Fiora fechou as portas da sua memória à recordação sempre ardente da sua noite de núpcias. Philippe fora um professor maravilhoso, mas ela não queria recordar-se daquilo ali. Aliás, ouviam-se uns gritos nas profundezas da casa e Pippa precipitou-se para fora do quarto para ir ver o que se passava, gritando que era impossível ter uns minutos de paz «neste calabouço». Mas, quando regressou alguns minutos mais tarde, segurava no seu punho implacável um conjunto de farrapos escuros, de onde partiam uns gemidos. A mulher atirou com tudo para o chão, perto do leito:

Encontraram ist’a rondar a casa há uns minutos. Sabes quem é, por acaso?

O monte de lenços agitou-se, abriu-se e apareceu o rosto aterrorizado de Khatoun. Da fronte corria-lhe um fio de sangue.

Fiora lançou um grito e, instantaneamente, viu-se de joelhos junto da jovem tártara, cujo rosto se iluminou.

Khatoun! disse ela. Que te fizeram?

A jovem quis tomá-la nos braços para a apoiar contra o seu ombro e enxugar-lhe o sangue que corria ainda, mas Pippa repeliu-a brutalmente para trás:

Na toques! Primeiro, respondes às perguntas! Quem é?

Chama-se Khatoun. O meu pai comprou a mãe dela, que era tártara, quando ainda estava grávida. Ela nasceu no palácio e é a minha companheira desde sempre.

Uma escrava, ha?

Sim, mas eu nunca a considerei como tal. Eu... eu gosto muito dela. É preciso tratar dela, vê-se bem que está ferida.

A culp’é dela! Lutava com’um gato furioso quando Beppo, o meu irmão mais novo, lhe pôs a mão em cima. Até o arranhou. Então, ele deu-lh’uma cacetada. Mas agora é preciso saber: que faz ela aqui?

Primeiro, trata dela exclamou Fiora. Vê-se muito bem que ela está quase a morrer!

Khatoun, com efeito, tentara levantar-se, mas as forças faltaram-lhe e voltou a cair no chão, ao mesmo tempo que o seu pequeno rosto ficava esverdeado e as suas narinas se dilatavam... Sem responder a Fiora, Pippa inclinou-se, pegou nela pelos braços e pousou-a em cima do leito, resmungando que os trapos com que ela estava vestida iam estragar os lençóis. Mas era, incontestavelmente, uma mulher eficaz: num abrir e fechar de olhos, sob o olhar inquieto de Fiora, lavou a ferida, besuntou-a com uma pomada que estancou o sangue e depois passeou sob o nariz da doente um frasco de sais que deviam ser particularmente vigorosos, porque Khatoun saiu do seu desfalecimento com um espirro.

Pronto! disse Pippa. Como vês, não está morta! E agora, vai ter que falar!...

Um pouco de paciência! indignou-se Fiora. Dá-lhe qualquer coisa de beber! Um pouco de vinho!

Mas, palavra de honra, ela agora dá-m’ordens? rugiu o Mulherão, que foi, mesmo assim, buscar um frasco de vinho, do qual deu a beber uma taça a Khatoun, que, apesar de parecer completamente extenuada, recuperou o ânimo. Então, contou como, a partir do dia seguinte ao funeral do seu senhor se deslocou, disfarçada de mendiga, às imediações do convento de Santa Lúcia. O seu instinto, agudo como o de um animal fiel, dizia-lhe que Fiora estava em perigo naquela «santa» casa. Ficara por ali, não se afastando senão para comprar a pouca alimentação que as poucas moedas atiradas pelos passantes lhe permitiam...

Na tiveste sarilhos com a confraria dos mendigos? observou Pippa. Espantas-m’um pouco: os lugares diante das igrejas e os conventos são lugares de escolha. Isso paga-se, geralmente...

Não vi ninguém disse Khatoun erguendo para a imensa mulher um olhar cheio de inocência. Talvez o mendigo habitual estivesse doente?

Pouco provável! Essa raça é sólida. Ou se está vivo, ou se está morto. Não há meias-medidas. Mas, continua a tua história!

Pouco mais havia que contar. Na segunda noite de sentinela, a pequena escrava vira a porta abrir-se para a noite escura. Uns homens mascarados tinham-se aproximado e recebido um grande fardo escuro, que um deles tinha carregado aos ombros. Partiram silenciosamente e Khatoun tinha-os seguido até àquela casa, onde os tinha visto entrar. Tinha a certeza, sem poder explicar porquê, que aquele fardo não continha outra coisa senão Fiora. Compreendeu que tinha razão quando o tumulto colérico da cidade lhe disse que o julgamento não teria lugar porque a acusada tinha fugido... Desde então, ficara certa de que Fiora se encontrava naquela casa, onde vira entrar os dois homens...

Com os olhos brilhantes de esperança, Fiora seguiu apaixonadamente o relato da jovem tártara, mas não ousou, por prudência, fazer a pergunta que lhe queimava os lábios. Foi Pippa que a fez, negligentemente, como se se tratasse de uma coisa sem importância, mas brincando ao mesmo tempo com o grande alfinete que acabava de retirar da sua coifa.

Como é possível na teres pedido ajuda? Não procuraste socorro? Khatoun baixou os olhos e as duas mulheres puderam ver umas lágrimas correndo lentamente pelas suas faces cor de marfim.

Eu regressei ao palácio para procurar ajuda, mas não pude aproximar-me. Havia soldados por todo o lado, retendo a multidão. Uma multidão... que gritava «À morte!... À morte a feiticeira!» E havia mais no interior: Vasculhavam tudo e... e pilhavam; Ouviam-se os móveis, que eles atiravam para o pátio, a quebrar... Foi... terrível! E eu já não sabia para onde ir... e quem procurar. Pensei em donna Chiara, mas o porteiro expulsou-me. Então, voltei para aqui para tentar... já não sei o quê.

Com um nó na garganta, Fiora escutara aquelas frases que lhe anunciavam a sua total ruína e o fim das suas esperanças. Não era desgosto o que ela sentia o desgosto, tão cruel pela morte do seu pai, nem sequer lhe tinham dado tempo para o sentir e ela sabia que ele voltaria à carga mais tarde era simples fúria, uma raiva impotente. Tinham-lhe tirado tudo, deixando-lhe apenas a honra e, dentro de algumas horas, nem isso existiria. Seria profanada, aviltada, irremediavelmente suja, atirada para a lama, da qual o bom Francesco Beltrami quisera preservar um bebé inocente... A jovem acabou por explodir:

E Lourenço?... Lourenço de Médicis, o senhor de Florença, que fazia ele enquanto me procuravam para me matar, enquanto pilhavam a minha casa... enquanto massacravam, sem dúvida, a minha velha Léonarde? Onde estava ele, o Magnífico, o Todo-Poderoso? No seu jardim da Badia, ou de Careggi? A ver florir os loureiros e compondo versos de louvor à beleza? Ou ainda a ler algum livro raro? O meu pai tinha alguns admiráveis... mas talvez ele os tenha levado para a sua própria biblioteca?

A jovem gritava, parecendo uma daquelas carpideiras antigas, ao mesmo tempo que umas lágrimas amargas lhe corriam dos olhos... Vivamente, Pippa fechou-lhe a boca com a sua grande mão:

Cala-te! Queres que nos enforquem? Há gente nesta casa. As raparigas estão a trabalhar e os clientes a chegar.

Que tens tu a temer? perguntou-lhe Fiora com amargura. Eu acabo de te dizer que os Médícis não são tão poderosos como isso...

De qualquer maneira, têm espiões por toda a parte. É graças a isso que são os mais fortes, a isso e ao ouro! Não têm o sangue mais azul do qu’eu e ele sabe-o bem, esse Lourenço, que casou c’uma princesa romena p’ra arranjar semente de príncipe. Vamos, acalma-te! Se te dá prazer, eu compreendo-te. Custa a engolir.

É o mínimo que se pode dizer.

D’acordo, mas tu- ainda na perdeste tudo. Resta-t’esse palminho de cara... e o corpo. Quando eu t’ensinar a servires-te dele, verás que podes fazer grandes coisas com ele. Em Roma farás uma fortuna e talvez consigas, um dia, vingar-te. Por agora, deita-t’e dorme! Quant’a esta...

Que lhe vais fazer? exclamou Fiora já na defensiva e rodeando Khatoun com os braços.

Estava a pensar em matá-la, porque só os mortos é que na falam, mas talvez tenha outra coisa melhor p’ra ela...

O quê?

P’ra já, vou-lhe tirar esses lenços todos p’ra ver o qu’está por baixo! Uma escrava tártara custa caro. Ela sabe fazer o quê?

Cantar, dançar e tocar alaúde... Mas, proíbo-te que a ponhas no mercado de escravos. Ela é minha e tenho muita afeição por ela. Se nos separares, não conseguirás nada de mim. Hei-de conseguir matar-me!

Sem responder, mas com um suspiro cansado, Pippa mandou Khatoun levantar-se e começou a despi-la. Parecia um grande macaco ruivo em vias de descascar uma noz fresca. Demasiado fatigada para perceber, Khatoun deixou-se ir, mas as suas pernas vacilaram e os seus olhos fecharam-se, a despeito dos esforços que fazia para os manter abertos. Sem que ela parecesse aperceber-se, o Mulherão submeteu-a ao mesmo exame que fizera antes a Fiora. Esta esperou impacientemente que ela terminasse, mas, subitamente, sobressaltou-se, não acreditando no que os seus olhos viam e os ouvidos ouviam: sob as mãos de Pippa, que deslizavam docemente pelo seu corpo, Khatoun gemia e torcia-se, agora bem acordada a despeito de os seus olhos, meio transtornados, se fecharem. A garota ronronava como uma gata sob aquilo que se podia chamar carícias. E, subitamente, deixou-se cair de joelhos afastados e as mãos agarradas aos seios, enquanto os dedos de Pippa procuravam a sua intimidade. O jovem corpo de marfim distendeu-se como um arco, ofegando como um animal ávido, caiu com um grito e contorceu-se num longo espasmo... Pippa, que se ajoelhara, levantou-se, como se o que acabava de acontecer fosse a coisa mais natural do mundo.

A mulher lançou a Fiora, espantada, um olhar malicioso:

Deve saber mais do que dançar e tocar alaúde, esta pequena! Nunca fizeste amor com ela?

Tu és louca? exclamou Fiora, indignada. O amor só se faz com um homem... e com um homem que se ama!

Bem, ainda tens muita coisa p’raprender! Podemos prestar grandes serviços entre mulheres, serviços bem agradáveis, que fazem esquecer a brutalidade dos homens. São raros aqueles que sabem dar prazer. A maior parte comporta-se como soldados numa cidade conquistada. Ao passo que outra mulher... Queres que te mostre?