- Isso tá melhor, ha? Prefirassim. Na gosto que tejam doentes em minha casa. Já te trazem de comer daqui a pouco. Por agora, levanta-te. É preciso mudar isto tudo!
Fiora levantou-se e constatou que continuava a usar a camisa que lhe tinham dado em Santa Lúcia e que essa mesma camisa estava tão molhada como o resto.
Tira isso! ordenou Pippa, que num abrir e fechar de olhos tinha acendido o braseiro, deitado para lá umas ervas odoríferas e feito a cama. Tudo numa atmosfera de tremor de terra.
O que é que eu visto? perguntou Fiora, procurando qualquer coisa à sua volta.
Tira! Tratamos disso depois! Vamos, depressa!
Fiora tirou a camisa e estendeu a mão para um dos cobertores que Pippa acabava de tirar para se cobrir com ele, mas a mulher interrompeu-a com um brutal:
Quieta! Tenho de ver comés em pêlo. Uma bela carinha é bom, mas é preciso qu’o resto também seja... Fica quieta, estou-t’a dizer! Na m’obrigues a ir já buscar o chicote!
O chicote? exclamou Fiora, indignada. Proíbo-te de me tocares! Imaginas que vou permitir que me chicoteiem? Eu não te conheço e quero sair daqui! Sem se preocupar com a sua nudez, a jovem já se lançava na direcção da porta, mas Pippa agarrou-a em movimento com um braço e Fiora sentiu-se presa num torno:
Quietinha, ha? grunhiu a mulher. Aqui faz-se o qu’eu digo e só se sai p’ra ir ond’eu digo! Percebeste?
Fiora torceu-se sob o terrível aperto e só conseguiu magoar-se ainda mais. Tinha de se manter direita e suportar o exame da mulher, retendo lágrimas de raiva. A outra largou-a e afastou-se alguns passos para a ver de pé e depois aproximou-se de novo, apalpou-lhe os seios para lhe testar a firmeza, tocou-lhe no ventre, apalpou-lhe as nádegas, acariciou-lhe as coxas e finalmente suspirou, atirando a Fiora uma camisa de seda vermelha usada:
Seu na fizer fortuna contigo, é porque sou a rainha das lorpas! Por Belzebu, tu és um verdadeiro pedaço de reis! O cliente ficará contente, mas vai ser preciso que tu na te estragues...
O... cliente? repetiu Fiora, espantada. Qual cliente? E, antes de mais, que casa é esta? Que queres tu de mim?
Pippa colocou-se diante dela de mãos nas ancas, dominando-a com toda a sua estatura:
O cliente é o que te meteu aqui, em casa da Pippa, a alcoviteira mais famosa do Tirreno, no Adriático! Ele quer desflorar-te e dormir contigo até lhe apetecer! Ou até que tenha mais dinheiro e eu espero bem que na demore muito, porqu’agora que te vi, na tenciono vender-te qualquer um. Até tenho uma ideia...
Contrariamente ao que Pippa pensava, o facto de descobrir o horror da sua situação galvanizou a coragem de Fiora:
Porque
imaginas que eu vou deixar que me façam isso? gritou ela. Tu não sabes quem eu sou...
Quem tu eras, queres antes dizer? Porque tu já n’és nada, Fiora Beltrami, menos que nada, até: uma criminosa em fuga, uma feiticeira procurada pela Igreja e pela gente do Bargello. Queres que t’explique porquê?
É claro que quero!
Então, escuta! Ontem de manhã as irmãs de Santa Lúcia aperceberam-se de que tu tinhas fugido pelo pátio das cozinhas, subindo o muro co’ajuda d’uma escada. Encontraram o teu véu por baixo da escada. Toda a gente pensa que deste às de vila-diogo porque tinhas medo do juízo de Deus. O que quer dizer qu’és de má raça. Como não estavas lá, a Senhoria condenou-te. E ’tava lá o prior de San Marco com um monge espanhol e eles pediram que, se fosses encontrada, que fosses atirada p’ra Stinche, enquant’esperas pelo teu julgamento... e pela fogueira! Compreendeste, desta vez?
Fiora dobrou os joelhos e deixou-se cair em cima do monte de cobertores abandonado no chão. Sim, compreendera a infernal maquinação montada contra si. Certamente pelos Pazzi, pelo velho Jacopo e pela sua infame nora. Agora compreendia por que razão Hieronyma reclamara o juízo de Deus com tanto zelo: tudo devia ter sido feito antes da cena escandalosa que tivera lugar no adro do Duomo. As cumplicidades estavam à vista, a começar pelas do prior de San Marco e de frei Inácio Ortega este não vinha de Roma, onde Francesco Pazzi tinha uma boa vida na corte? e Fiora descobriu com amargura que o poder dos Médicis tinha pés de barro, que era possível, senão fácil, neutralizá-lo apelando para o povo, esse monstro de cem mil cabeças e ideias volúveis, e até para a Senhoria, onde, entretanto, Lourenço instalara homens da sua confiança. Se ela, Fiora, acabava de ser levada por aquela súbita borrasca, uma outra qualquer poderia levar os próprios Médicis, porque, mantidos afastados e meio arruinados, os Pazzi podiam ainda agir e ganhar.
Do alto da sua estatura o Mulherão, de braços cruzados no peito, gozava o seu triunfo sobre aquela bela criatura, que ela julgava quebrada. Mas conhecia-a mal, ou mesmo de todo. Bruscamente, Fiora levantou-se e fez-lhe frente:
1 Prisão de Florença.
Se acreditam que estou em fuga, não te arriscas ao manter-me aqui? perguntou ela friamente.
Na creio qu’o risco seja assim ta grande. Quem teria a ideia de procurar a filha de Beltrami numa casa com’a minha? De qualquer maneira, vale a pena. Acabo de te dizer que conto contigo para fazer definitivamente a minha fortuna...
Entregando-me aos homens que vêm a tua casa? Esqueces-te de uma coisa: muita gente me conhece em Florença; qualquer um pode...
Reconhecer-te? Achas-m’uma imbecil? É claro qu’isso pode acontecer, mas na penses que, para além daquele que te quer, te vou entregar a um qualquer, arriscando-me a qu’um bêbedo t’esventr’o pescoço c’uma faca? Tu na és mercadoria p’ra um marinheiro bêbedo qualquer. Se queres saber, os que te trouxeram p’ra aqui querem que, depois do que já sabes, te leve a Ancona, onde eu tenho alguns interesses e te venda lá discretamente... mas caro, a um pirata turco qualquer.
A Ancona? Nos Estados do Papa? Que coisa tão verosímil!
Mais do que pensas. O nosso Santo Padre actual na se preocupa com cruzadas. Sobretudo, ele gosta é d’ouro. Aliás, ele sabe sempre o que se passa nas suas costas... Mas, fica tranquila, tu não vais p’ra lá. Eu não vou fazer uma venda à pressa a um turco qualquer, quando há em Roma um cardeal que é capaz de pagar o teu peso em ouro...
Um cardeal? disse Fiora, horrorizada.
Por que não? São homens como os outros e est’inda mais do que todos os outros. Basta prometer-lh’uma bela rapariga. Chama-se Rodrigo Borgia, é o cardeal vice-chanceler, um verdadeiro touro! Verás...
Não verei nada gritou Fiora. Pensas que vou ficar aqui?
Na podes fazer outra coisa!
Nesse caso, mato-me!
Na terás ocasião. Vou manter-te vigiada, minha querida. Mas agora chega de conversa. Pensava que tinhas fome?
O encanto da tua conversa fez-me esquecê-la... Brutalmente, Pippa agarrou no rosto de Fiora, que apertou até magoá-la:
Na brinques comigo! Podes arrepender-te!
Ora, ora! Tu não és mulher para dar cabo da mercadoria...
Há outros meios sem ser o chicote. Por exemplo, um pimento colocado no lugar certo. E agora, vai-te deitar. Já te trazem de comer e depois podes dormir. Não há nada como o sono, a sério, e boa comida, para te dar uma boa pele. Amanhã tens de estar pronta p’ra agradar...
Mas Fiora não tinha vontade de dormir. Entregue a si mesma, deu a volta ao seu novo alojamento procurando uma saída, um buraco pelo qual deslizar para encontrar a liberdade. Pippa tinha-lhe dito que, lá fora, arriscava-se a uma prisão mais dura do que aquela e a uma morte terrível, mas a jovem pensava que tudo era preferível a ficar ali para ser entregue aos caprichos de um desconhecido, que ela, em vão, tentava descobrir quem era.
Infelizmente, a evasão parecia difícil, senão impossível. A porta, baixa e áspera, com as suas dobradiças de ferro e a sua grande fechadura era impossível de forçar. Aliás, quando se abria podia ouvir-se o estalar dos ferrolhos exteriores. Portanto, era impossível passar para o lado de lá, a menos que quisesse defrontar o Mulherão e isso seria pura loucura: uma pessoa não se pode medir com uma montanha...
O respiradouro, que ela conseguiu atingir subindo para um escabelo, dava para um pátio interior, uma espécie de poço cego, mas que devia ter uma saída qualquer. Â vista que teve permitiu, no entanto, que a jovem constatasse que o seu quarto se encontrava no rés-do-chão, coisa de que duvidara antes, aliás, devido à pouca luz que se escoava pelo buraco de escoamento das águas. Simplesmente, para passar, seria preciso serrar, ou arrancar, pelo menos, uma das barras de ferro que impediam a passagem. Em todo o caso, Fiora abanou uma e depois outra das três barras e constatou que uma mexia um pouco. Mas o barulho dos ferrolhos fez-se ouvir e ela atirou-se para a cama para não ser surpreendida nas suas tentativas.
Pippa encontrou-a deitada e teve um largo sorriso:
Dir-se-ia que te tornaste razoável? Nesse caso, talvez nos entendamos. Pega lá, trago-te galinha de zafferand, pão branco e doce de ameixas! Amanhã terás chianti para te dar um pouco de cor e aquecer-t’um pouco o sangue...
A mulher colocou a escudela nos joelhos de Fiora e, para grande surpresa desta, atirou-lhe mesmo um guardanapo aquela raridade que se encontrava apenas nas casas mais refinadas! pelos ombros, acrescentando que era para evitar sujar os lençóis. Em seguida, a alcoviteira observou-a enquanto a jovem pegava elegantemente nos bocados
1 Açafrão
de carne com a ponta dos dedos, que mal tocavam no molho avermelhado:
Vê-se que foste bem-educada! comentou ela. Uma verdadeira princesa, que está à-vontade no mais belo dos palácios. É pena que na te tenham ensinado a fazer amor tão bem, mas, depois do negócio d’amanhã, que talvez sej’a muito agradável p’ra ti, ensino-t’a dar prazer a um homem, mesmo que ele na tenha vontade. Tenh’a certeza qu’és dotada...
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