O quê? Não tens um director de consciência?
Eu sempre tive confiança no juízo e rectidão do meu pai. Ele é que era o meu director de consciência...
Um homem que mentia tão bem? E que, naturalmente, não te empurrava muito na direcção da Igreja. Era a ela que devias ter sido confiada desde o teu nascimento, para que pudesses expiar, nos rigores benfazejos de um convento, o crime e o grande pecado da tua concepção, que o baptismo não foi suficiente para apagar...
O meu pai não achava que eu deveria pagar por um pecado que não cometi. Ele queria que eu acreditasse que era uma rapariga como as outras. Queria que eu fosse feliz...
É por isso, sem dúvida cortou a madre Maddalena que ele te educou nos preceitos ímpios desses filósofos antigos, cujo pensamento infecta esta cidade, onde se consagra a esses escritos profanos, às artes, às festas e ao prazer o que se devia consagrar apenas a Deus.
O sumo pontífice sabe tudo isso, minha querida irmã e preocupa-se seriamente. A desordem espiritual de Florença aflige-o ainda mais porque o exemplo vem de cima. Os irmãos Médicis fazem pouco da fé cristã e da honra das mulheres. O adultério e o deboche espalham-se livremente pela sua corte. Eles chamaram aos seus conselhos gente baixa, ao mesmo tempo que, por meio do exílio, da morte ou simplesmente do desdém, afastaram aqueles que desde sempre contribuíram para a riqueza e bom nome da cidade... Mas Deus não os esquece!
Fiora olhou com estupor para aquele monge, que parecia em estado de transe. Com os olhos postos na abóbada, como se estivesse à espera que ela se abrisse para dar passagem ao castigo celeste, erguera-se e, apoiado com as duas mãos na mesa, vociferava o seu furor fanático... e o seu ódio pelos Médícis...
Acreditais que um dia o Anticristo se afastará de nós? perguntou a madre Maddalena com as mãos unidas e os olhos marejados de água.
Frei Inácio regressou bruscamente à terra e enxugou o suor que lhe perlava o crânio calvo: É o que espera Sua Santidade e eu não fui enviado aqui se não para lhe trazer o socorro dos meus olhos e dos meus ouvidos. Eu sou estrangeiro, portanto imparcial, mas o que vi e ouvi até agora faz-me lamentar que a poderosa máquina da Inquisição, tão florescente quando estava nas nossas mãos, tenha finalmente sido confiada aos irmãos pregadores, que não se preocupam muito com ela. Entretanto, seria desejável que ela retomasse o seu rigor nestes países e aliás, a rainha Isabel de Castela, por quem fui enviado a Roma, desejaria que o Papa autorizasse a sua instalação nos seus reinos, nos quais ela prossegue a sua reconquista face aos Mouros infiéis... mas, parece-me que nos afastámos um pouco do caso desta rapariga, a quem tudo isto não diz respeito. Ela olha para nós com olhos arregalados, que devia aprender a baixar!
Não tão afastados quanto isso, muito reverendo irmão. Não é ela o pior exemplo daquilo que produz uma educação onde Deus não entra?
Ler livros nunca impediu fosse quem fosse de servir e amar o Senhor protestou Fiora, indignada. Eu acho que sou tão boa cristã como...
Como eu, talvez? Não sejas vaidosa, Fiora!...
Deixemos isso, minha irmã e acabemos com isto! cortou frei Inácio secamente. Por agora, estou aqui para tentar salvar uma alma, se ainda for a tempo. Tu disseste-me, há pouco, que temias a morte, rapariga pecadora? Quero acreditar em ti, porque, com efeito, tu és jovem... e bela, mesmo se essa beleza é obra do Maligno. Portanto, faço-te uma pergunta simples: queres viver?
Viverei se Deus quiser e se o rio não me engolir disse Fiora calmamente.
És corajosa, reconheço-o... a menos que contes com a ajuda... do Outro?
Do Outro? Qual outro?
Não te faças inocente, porque os teus olhos não têm nada de inocente. Estou a falar daquele que os feiticeiros e feiticeiras invocam e tu tens tudo o que é preciso para ser uma. Já vi iguais a ti sorrirem face a uma fogueira...
Mandastes-me vir aqui para me insultar? exclamou Fiora, revoltada. Eu não sou nenhuma feiticeira, assim como não o eram os meus infelizes pais, cujo único crime foi amar quem lhes era proibido!
Não te aconselho a invocá-los muitas vezes! Mas seja, acredito em ti: tu não és uma feiticeira disse o monge com a voz subitamente diferente, tão doce e envolvente como antes dura e cortante. Tu não passas de uma ovelha tresmalhada, por teres maus donos. É por isso que me proponho salvar-te.
Tens, portanto, o poder de evitar que eu seja atirada à água, quando toda a cidade espera isso com impaciência?
Vejo que não tens muitas ilusões sobre o que podes esperar dos teus antigos amigos! disse frei Inácio com um pequeno sorriso. Dito isto, não me é possível evitar o juízo de Deus. A única pessoa que o pode fazer és tu mesma.
Eu?
Quem mais? E basta uma pequena coisa: reconhece diante de mim, aqui mesmo, que acusaste falsamente... talvez sob o império do desgosto como vês, esforço-me por te compreender! aquela pobre mulher... Lembra-te que ela agarrou, como se fosse a sua última hipótese, a terrível prova que eu propus. Portanto, não pode ser culpada. Reconhece que te enganaste e eu farei com que os daqui se acalmem...
E se eu aceitar, que me acontece depois?
Primeiro, ficarás aqui no convento, aos cuidados da madre Maddalena. Será mais prudente, porque tu própria o disseste: estes bons florentinos só vêem em ti... uma filha de ninguém. Não poderás recuperar os bens do teu pai: Médicis ficará muito feliz por poder guardá-los para ele. Serás desonrada e atirada ao rio...
Por que razão seria obrigada a ficar aqui? Podia muito bem saír de Florença!
Mas, tu sairás de Florença. Quando os espíritos estiverem um pouco mais calmos e estiveres um pouco esquecida, far-te-ei conduzir a Roma, onde Sua Santidade, a meu pedido, te acolherá. Poderás, então escolher entre um convento agradável ou o serviço de uma nobre dama qualquer. A sobrinha do Papa, por exemplo: a condessa Catarina... Ela receberia, certamente com bondade, uma jovem indignamente abandonada e espoliada pelos Médicis.
Fiora, a princípio desorientada pelo tom subitamente amigável do monge espanhol e sem perceber os desígnios que o levavam a tentar que ela renunciasse à sua acusação, compreendeu subitamente. Vindo para fazer um inquérito acerca da depravação e supostas violências de Lourenço e Giuliano, frei Inácio contava fazer dela um dos peões do seu jogo. Se bem que pouco a par da política, sabia o suficiente para não ignorar que Sisto IV, inimigo mortal dos Médicis, porque desejoso de oferecer Florença ao seu sobrinho Girolamo Riario, marido de Catarina Sforza, esforçava-se por reunir à sua volta todos os inimigos do senhor da cidade cobiçada. Fiora juntar-se-ia em Roma a Francesco Pazzi, o vencido da giostra, de quem se dizia que estava a ser aliciado pelo Papa para os seus negócios de prata e que transferira para Roma, com a bênção do velho Jacopo, a maior parte da fortuna familiar. Entretanto, Hieronyma, reconhecida como inocente e pura, constituiria um insulto vivo para Lourenço, que tentara defender Fiora... e, certamente, conseguiria que lhe fosse atribuída pela Senhoria uma boa parte da fortuna dos Beltrami.
Vendo que a jovem se mantinha em silêncio, frei Inácio impacientou-se:
Então? Que tens a dizer? Creio que a minha oferta é generosa?
Também acho disse a prioresa. Pela minha parte, aceito manter-te aqui, onde serás tratada como a protegida da Igreja que em breve serás...
Fiora olhou para um e para outro: para ela, com os seus olhos ainda húmidos por uma estúpida ternura e para ele, com o tique enervante da boca, que mordiscava e humedecia. Tanto um, como o outro, causavam-lhe repugnância.
Agradeço-vos a ambos... muito sinceramente pelo interesse generoso que tendes por mim, mas prefiro enfrentar o juízo de Deus. Espero que ele me permita provar que tenho razão!
Frei Inácio, que voltara a sentar-se, saltou da cadeira como se tivesse sido impelido por uma mola:
Pobre louca! Acabas de assinar a tua condenação à morte! urrou ele, ao mesmo tempo que a sua companheira erguia as mãos e os olhos ao céu.
Tu não sabes nada, reverendo padre! Eu posso sobreviver ao afogamento.
Mas não ao fogo! Eu tinha razão: tu não passas de uma feiticeira e, se por infelicidade o rio te deixar viva, será à fogueira que farei com que te condenem! Como farei, talvez, com que condenem um dia o Médicis e todo o seu bando. Não ignoro que ele tem com ele um médico mágico e vidente grego, que não pode ser senão um subordinado de Satanás! Quando o Papa estender a sua mão sobre esta cidade maldita, todos eles arderão... mas tu, tu arderás antes deles, para maior glória de Deus!
O monge perdera o domínio de si próprio e à luz ondulante das velas a sua boca espumante, retorcida de raiva e os seus olhos chamejantes davam-lhe o ar de um demónio.
Será o que Deus quiser. Mas tu devias deixar que Ele próprio se encarregue da sua glória. Ele percebe certamente mais disso do que tu!
É a tua última palavra? Recusas?
Recuso. E agora, com a tua autorização, gostaria de regressar à minha cela. Faz-se tarde... e eu gostaria de rezar em paz.
Sacrilégio! O fogo do inferno espera-te depois do dos homens! O monge gritava tão alto que, temendo sem dúvida que ele fosse ouvido por toda a comunidade, a madre Maddalena apressou-se a chamar de novo a irmã Prisca batendo as palmas. A religiosa não devia estar longe, porque apareceu imediatamente. No instante seguinte, Fiora regressava atrás dela para o seu alojamento. Mal tinha entrado quando ouviu as freiras a sair da capela. A jovem ouviu-lhes os passos deslizantes e os cochichos: as filhas de Santa Lúcia deviam perguntar a si próprias por que razão a madre superiora não assistira ao ofício da noite. Depois, deixou de ouvir qualquer ruído, senão, na vizinhança, os latidos furiosos de um cão e, um pouco mais tarde, o apelo repetido dos soldados da guarda, que, nas muralhas, chamavam de uma torre para a outra.
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