Deus sabia, no entanto, que a ideia dessa morte a horrorizava. A espécie de estado de graça que conhecera quando, no seguimento de Hieronyma, decidira submeter-se ao juízo de Deus, desaparecera. Agora, estava face a si própria: uma rapariga de 17 anos, cheia de saúde e que diziam bela, uma rapariga que tinha uma enorme vontade de viver, de respirar o ar doce da Primavera, de sentir na pele a carícia do sol, de rir com uma amiga da sua idade, de ler belos livros, de escutar os acordes do alaúde e o canto dos poetas... de amar, mesmo se, para ela, essa palavra se escrevesse como odiar. E, sobretudo, uma rapariga que não queria apodrecer no fundo das águas amareladas pelas lamas do Inverno do rio que corria diante da janela do seu quarto...
Uma oração encontrou, subitamente, o caminho dos seus lábios:
Senhor, se eu tenho razão, fazei com que não morra!
Talvez para provar a si própria que continuava viva, a jovem sentiu a necessidade de se sentir ocupada, mesmo se a estreiteza da sua prisão não lhe dava muito espaço. Deitou água na bacia, arrancou, mais do que tirou o seu vestido de tecido fino negro que cheirava terrivelmente a couves e tratou de se lavar o melhor possível. Porque não era fácil com tão pouca água e o sabão grosseiro, feito de sebo e cinza de madeira, só de longe se assemelhava aos delicados cremes perfumados que o boticário Landucci mandava vir de Veneza, mas ela sentiu um certo conforto ao sentir-se lavada. Em seguida, com o pente que encontrara, desenredou e alisou longamente os seus espessos cabelos negros, onde permanecia um vestígio do perfume caro que Khatoun lhe pusera enquanto a penteava. Lamentou-o porque não era bom evocar as imagens de um passado agradável e, esforçando-se por pensar noutra coisa, entrançou os cabelos numa espessa trança, que deixou cair sobre o ombro esquerdo. Por fim, vestiu o hábito branco que lhe tinham deixado. A lã, tecida no convento, era rude, mas, pelo menos, estava lavado e, no fim de contas, era agradável de usar...
O tinir de uma campainha atraiu Fiora à pequena janela que dava perto da porta, para as arcadas do claustro. A jovem viu a longa fila branca e negra das religiosas dirigindo-se para a capela naquele passo silencioso provocado pelas sandálias de corda entrançada. Nenhuma virou a cabeça na sua direcção, desaparecendo por trás das portas da capela entoando o Veni Creator...
O eco das suas vozes permaneceu mesmo depois de as portas se terem fechado e Fiora ficou ali a ouvi-las e a contemplar a ordem fresca do jardim interior, plantado com loureiros, teixos e limoeiros, rodeando os canteiros cercados de buxo, onde as freiras cultivavam plantas medicinais. No meio havia uma bacia de pedra com um delgado jacto de água, onde as aves iam beber. E era uma imagem tão bela, tão tranquila e doce, que a cativa ficou ali um longo momento a contemplá-la. Seria, sem dúvida, uma das últimas que lhe seria dado admirar, mas, pelo menos, os seus olhos poderiam encher-se de beleza até ao momento da partida. Depois, não teria mais do que erguê-los para o céu e fechá-los... para não mais os abrir.
Mas, coisa estranha, quanto mais Fiora se esforçava por se resignar, menos o conseguia.
O dia foi longo. A cativa passou-o quase todo a observar o jardim e o voo dos pombos. Mas perdeu muito do seu encanto quando viu Hieronyma, sempre vestida com o seu traje fúnebre, passeando-se pelo braço da madre Maddalena, como se se conhecessem desde sempre... E, subitamente, a jovem recordou-se do que lhe dissera Chiara numa das suas visitas: a superiora das dominicanas dava-se, sem dúvida, com os Albizzi, mas tivera por mãe uma Pazzi. Era naquele parentesco que era preciso procurar a causa do tratamento de favor de que gozava a sua inimiga. Esta permanecia um membro da nobreza florentina, ao passo que a ela lhe recusavam o direito de se dizer filha de Francesco Beltrami. A outra era recebida como uma amiga, ao passo que Fiora era vista apenas como uma prisioneira.
Entretanto, a sua ameaça de denunciar publicamente o tratamento indigno a que a submetiam dera os seus frutos com aquela mudança de alojamento. E quando a meio do dia lhe trouxeram a refeição, esta, sem ser faustosa, era farta: almôndegas de vitela com puré e um bocado de pão branco. Apenas a água continuava a mesma... Fiora devorou tudo, pensando que a fome não era uma boa companheira de combate e que se luta melhor quando se está na plena posse das suas forças. Aquela ideia fez-lhe companhia durante o resto do dia, mas, quando a noite caiu, reapareceu a angústia. Teria sido agradável ter junto de si uma amiga a quem se confiar, porque naquele convento, onde ainda há pouco lhe sorriam, nenhum rosto se queria virar para ela. Pior ainda: ninguém se queria aproximar dela.
As freiras estavam de novo na capela para cantar as vésperas, que é a última oração da noite, quando de súbito, aquela que viera ter consigo de manhã apareceu de novo, sempre muito fria, sempre muito distante, de vela na mão.
Põe esse véu na cabeça! ordenou ela apontando para o tecido branco com que Fiora não julgara útil cobrir-se e segue-me!
Onde vamos?
Já vais ver! Mas aconselho-te a que tenhas uma atitude menos arrogante! No lugar onde te vou conduzir impõe-se um comportamento modesto e não esse olhar seguro e nariz arrebitado!
Desde a minha mais tenra idade que me aconselham a manter a cabeça bem erguida... seja em que circunstância for!
A religiosa encolheu os ombros, saiu da cela e encaminhou-se para a direcção oposta à que ia dar à capela. Fiora seguiu-a. A corrente de ar que ali reinava apagou a chama da vela, aliás inútil: a noite que banhava o jardim interior era suficientemente clara para que se orientassem e Fiora, que estava fechada desde manhã, respirou os odores frescos com delícia. Mas, de facto, não foram longe: até ao outro lado do claustro, onde a freira abriu uma porta baixa e mandou entrar a sua companheira. As duas mulheres encontraram-se na soleira de uma sala bastante grande, onde uma abóbada romana se apoiava em pesados pilares redondos. Ali, por trás de uma mesa sobre a qual ardia um archote de cinco mechas, estavam sentadas duas personagens, imóveis sob as pregas negras e brancas dos seus hábitos quase iguais: a madre Maddalena degli Angeli e o monge espanhol de San Marco: frei Inácio Ortega.
Obrigada, irmã Prisca! disse a prioresa. Quanto a ti, Fiora, aproxima-te. Aqui o nosso venerável irmão Inácio deseja fazer-te algumas perguntas. Não te esqueças, ao responder-lhe que ele é um enviado do nosso Santo Padre o Papa Sisto, que Deus queira conservar com a sua saúde e santidade.
Fiora inclinou-se sem uma palavra, perguntando a si própria que faria um enviado do Papa num convento de mulheres àquela hora. Também não percebia muito bem o que teria ele para lhe dizer, mas, lembrando-se que fora ele que propusera o juízo de Deus, pensou que era melhor ter cuidado.
Seguiu-se um silêncio. Apoiado na cadeira de madeira escura em que estava sentado, o monge, de olhos meio fechados, olhava para a alta e delgada silhueta branca que tinha diante de si, direita e digna, sem medo aparente, mas também sem sobranceria. As chamas do candelabro cinzelavam os traços do rosto delicado e punham reflexos dourados nos grandes olhos cinzentos sob a brancura do véu de onde deslizava, para cima de um ombro, a espessa trança de cabelos brilhantes. Frei Inácio mordiscou os lábios finos, que humedeceu em seguida com a ponta da língua. Depois, abandonando com um suspiro a sua pose descontraída, encostou-se à mesa:
Tu pretendes chamar-te Fiora Beltrami? perguntou ele depois de ter deitado uma olhadela a uns papéis pousados diante de si.
Nunca me chamei outra coisa. A reverenda madre aqui presente pode atestá-lo: ela conhece-me há muito.
Mas pode ser que tenhas abusado da reverenda madre, assim como de toda a cidade e não tenhas direito a esse nome.
Tenho o direito que me concedeu a Senhoria, ao assinar o acto de adopção que o meu pai lhe entregou.
Mas esse acto de adopção é falso, porque o teu... pai enganou conscientemente a Senhoria. Na realidade, tu és a filha de dois miseráveis que a justiça de Deus mergulhou no fundo dos Infernos.
Só Deus pode dizer que justiça é a Sua e eu creio, antes de tudo, na sua misericórdia.
A voz de Fiora permanecia tão firme como a sua atitude.
Erguendo as suas pálpebras engelhadas, frei Inácio fixou-a, como se através da intensidade do seu olhar quisesse reduzi-la à submissão. Fiora encontrou aqueles olhos sem cor definida e não baixou os seus. Um ligeiro rubor coloriu as faces magras do monge espanhol.
Atitude cómoda! Será porque temes essa justiça? No entanto, aceitaste com facilidade submeter-te à sentença do juízo de Deus! É verdade que foste um pouco obrigada... Não foste tu a primeira a aceitar, mas sim aquela que acusaste. Se ela está inocente, como tudo leva a crer, tu vais morrer. Não temes a morte?
Mentiria se dissesse que não. Eu tenho 17 anos, reverendo padre mas, se tenho razão, não morrerei. Hieronyma, pelo contrário, morrerá e é a ela que deveríeis perguntar por que razão o aceitou ela com tanta facilidade...
Mas, justamente, porque a sua consciência é tão pura como a sua alma exclamou a madre Maddalena e porque a sua fé em Deus é total. Não sei se se poderá dizer o mesmo de ti!
Erguendo a mão num gesto apaziguador, frei Inácio pôs fim à intervenção da prioresa.
Veremos isso mais tarde. Quem é o teu confessor?
Fiora hesitou. Ela confessava-se raramente, tanto ao cura de Santa Trinita como ao capelão de Orsanmichele, sem que fosse possível dizer qual tinha a sua preferência. Era uma questão de horas e de humor, porque, nunca tendo conhecido grandes pecados, parecia-lhe uma coisa sem interesse ir confiar os seus pensamentos mais íntimos a um quase desconhecido. A jovem confessou francamente essa dupla participação na sua vida religiosa e compreendeu de imediato que acabava de escandalizar frei Inácio ao ver o seu grande nariz estremecer:
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