Ao mesmo tempo que se esforçava por se desapegar dos bens deste mundo, a sua natureza permanecia viva e reclamava o que lhe era devido. Apercebeu-se que tinha fome, ferrou os dentes no pão que não estava excessivamente duro e bebeu alguns goles de água, que estava fresca e pura. Sentiu-se um pouco menos miserável, mas tinha frio. A janela não era mais do que uma abertura na parede e nenhuma vidraça protegia a cela contra a temperatura exterior. Ora, a chuva, que começara a cair aquando da sua chegada a Santa Lúcia, caía agora a potes, empurrada por um vento violento vindo de norte. Penetrava naquela prisão, que não era outra coisa, aumentando a poça de água gordurenta deixada pela escudela quebrada.
Fiora sentiu vontade de atirar os cacos de barro e os restos de comida que sujavam o chão pela janela fora, mas o orgulho reteve-a. Não lhe pertencia a ela fazer o trabalho de uma servente. Pretendia proteger, ao menos, a sua dignidade o mais possível. Depois do juízo de Deus, se sobrevivesse, a Providência, que não parecia mostrar grande interesse, saberia o que fazer dela. A única certeza que tinha era que combateria até ao limite das suas forças para que lhe fosse feita justiça.
Isócrates escrevera algures: «Não devemos perder a coragem quando nos expomos ao perigo por uma causa justa.» A recordação daquela frase trouxe-lhe algum conforto. Aqueles queridos filósofos gregos sabiam sempre o que era preciso dizer e correspondiam melhor ao seu temperamento combativo do que os preceitos resignados do Evangelho. Platão dizia que era preciso fugir, sem olhar para trás, dos maus, ao passo que Cristo recomendava que se amasse o próximo como a si mesmo. Ora, era impossível Fiora ter por Hieronyma sentimentos fraternais. Se tinha de morrer dentro de três dias, morreria odiando-a e sem nunca lhe perdoar, assim como nunca perdoaria aos perseguidores da sua mãe ou ao homem que, por devoção ao seu príncipe, lhe fizera tanto mal.
As doces notas do Ângelus caíram sobre aquela alma revoltada sem lhe provocar qualquer apaziguamento. Fiora nem tinha vontade de rezar, mas, como tinha frio, enrolou-se no cobertor e deitou-se para tentar conciliar o sono. Que, aliás, não se fez rogado, de tal modo o seu corpo jovem, esgotado, reclamava repouso. Alguns instantes depois de ter fechado os olhos, Fiora adormecia profundamente.
Impressionado, sem dúvida, pela angústia do que iria suportar em breve, o seu espírito arrastou-a para um pesadelo. A jovem viu-se de pé, descalça e em camisa nas margens de um rio turbulento e sulfuroso, que só vagamente se parecia com um rio familiar. Na outra margem, mesmo na sua frente, estava Philippe de Selongey; ele estendia-lhe os braços e chamava-a. Ela queria ir ter com ele, mas uns braços cada vez mais numerosos e mais pesados, impediam-na. E Philippe chamava sempre... Por fim, ela sentiu-se violentamente empurrada e a água engoliu-a; conseguiu subir à superfície e a corrente levou-a, mas, na outra margem, Philippe, agora, ria, ria dos esforços inauditos que ela fazia para chegar até ele. A jovem viu-o estender uma mão para uma mulher sem rosto que se aproximava dele e que, no seu sonho, Fiora sabia ser muito bela. Eles riram-se juntos e depois, virando-se, afastaram-se enlaçados. Fiora tentou gritar, mas nenhum»som lhe saía da boca, que se enchia cada vez mais de água...
Um abanão acordou-a. Ainda ofegante do pesadelo, a jovem ergueu-se e viu que uma religiosa se encontrava junto do seu leito, ao mesmo tempo que se apercebeu de que o dia já despontava. Já não era uma irmã leiga, antes uma verdadeira religiosa, cujo hábito impecável vestia um corpo longo e magro. Na oval estreita deixada pelo escapulário branco o rosto sem idade não deixava de ter uma certa beleza devida à regularidade dos traços, mas nenhuma doçura lhe atenuava a severidade...
Levanta-te! ordenou a dominicana e segue-me! Maquinalmente, Fiora obedeceu e então viu que a gorda irmã da véspera estava ajoelhada no chão, lavando-o. Ela levantou a cabeça quando Fiora passou por ela e escarrou com uma tal expressão de ódio que um arrepio percorreu a espinha da jovem.
Onde me levas? perguntou Fiora sem obter qualquer resposta. A alta silhueta branca e negra caminhava na frente dela com um passo deslizante que apenas imprimia um ligeiro movimento ao hábito e Fiora teve a impressão de seguir um fantasma. Atravessaram assim alguns corredores, passaram pela capela debilmente iluminada, na qual se podiam ouvir as vozes em uníssono das freiras cantando a oração da manhã e atingiram o claustro, do qual Fiora se recordava. Ali, a sua guia abriu diante dela a porta de uma cela que se encontrava no ângulo mais afastado da capela:
Para te evitar o pecado da denúncia, a nossa reverenda madre decidiu alojar-te aqui até ao dia do julgamento. Bem entendido, não sairás daqui, mas encontrarás em cima da cama roupa limpa para substituíres as tuas, sujas...
Agradece por mim à reverenda madre murmurou Fiora, acrescentando: Posso ter esperança de também assistir às orações?
Não peças demasiado! Nenhuma das nossas irmãs deseja aproximar-se de ti e eu já te disse que não sairás daqui senão para o juízo de Deus. Arrepende-te!
De quê?
Se não sabes, Deus sabe! Mas eu creio que tu não ignoras nada. É um pecado grave acusar uma inocente!
Inocente? Que sabes tu?
Pobre mulher! Seria preciso vê-la rezar na nossa capela de braços cruzados, com lágrimas e súplicas, para que a luz tocasse, enfim, o teu coração endurecido e visses como a sua alma é pura...
Porque ela reza por mim? articulou Fiora, siderada.
Apenas e só. É por isso que eu te digo: arrepende-te!
E após aquela última imposição a religiosa saiu e fechou a porta daquela nova cela com tanto cuidado como a da anterior, deixando Fiora dividida entre a cólera e a repugnância. Nunca imaginara que a hipocrisia de Hieronyma pudesse atingir tais limites. Procurou à sua volta qualquer coisa à qual aplicar o seu furor, mas se aquele novo alojamento era mais confortável e sobretudo mais limpo, era também tão desprovido de tudo como o precedente.
Uma cama, uma verdadeira cama desta vez, se bem que estreita como um catre, ocupava, com as suas delgadas e pequenas colunas de cortinas brancas, um dos lados; uma cama sobre a qual tinham colocado um hábito e um véu branco de noviça. Havia dois escabelos e uma pequena arca, sobre a qual estavam colocados um jarro e uma bacia. Por cima da arca uma mão desconhecida, mas inspirada pela obra de Frei Angélico no convento dos dominicanos de San Marco, retratara, bastante mais laboriosamente, a morte de Santa Lúcia diante do prefeito Paschasius, de Siracusa. De pé junto da mártir ajoelhada, que olhava avidamente para o céu, o carrasco degolava-a, fazendo esguichar um rio de sangue que o pintor enriquecera com tinta dourada para melhor mostrar até que ponto ele era precioso. Fiora sabia que a vida da santa, dividida numa série de frescos, ornamentava certas celas das religiosas, as outras contando a vida de Cristo e a de santa Ágata, no túmulo da qual Lúcia fora tocada pela graça.
Levada pela curiosidade e sabendo que as freiras faziam voto de pobreza, Fiora tirou os utensílios de toilette e abriu a arca, mas fechou-a
196 de imediato com um arrepio de nojo: continha, com efeito, um suplício, um cinto com pontas de ferro e um cilício de crina, destinados, os três, à mortificação do corpo e ao castigo dos pensamentos impuros... A jovem perguntou a si própria se todas as celas conteriam aquele género de instrumentos e por que aberração umas mulheres, que se queriam esposas de um Deus de doçura, amor e misericórdia, utilizavam aqueles meios. Que amores feridos, que paixões sufocadas precisariam de recorrer à dor física para apagar a sua recordação? O amor, tal qual ela o conhecera nos braços de Philippe, deixaria vestígios tão insuportáveis, ou, pelo contrário, seria a mágoa, sentida por aquelas que entravam virgens para aquela casa por não terem conhecido nada de semelhante?
Pela sua parte, Fiora não lamentava nada e, se sobrevivesse, sabia que nunca pediria a um chicote, ou a um cilício, que lhe arrancasse a recordação das carícias que tinha conhecido. O seu estranho marido só quisera uma noite de amor e tinha-lha dado, inesquecível. Nunca Fiora procuraria apagar essa recordação, bem pelo contrário e se agora desejava vingar-se era, sobretudo, pelos meios empregues para conseguir essa mesma noite... e a grossa maquia em ouro que era o seu corolário. Porque Philippe não hesitara em acordar o amor de uma jovem, sabendo muito bem que depois de a ter feito sua a abandonaria para sempre. O borgonhês concretizara os negócios do seu senhor, ao mesmo tempo que satisfizera o seu próprio desejo. Quanto à fábula que dizia que ele queria morrer, a jovem não acreditava nela. O senhor de Selongey amava, demais a vida para sonhar, sequer, perdê-la. Fazia amor demasiado bem para renunciar a ele para sempre... Outras mulheres receberiam os seus beijos, as suas carícias e, se bem que o pensamento lhe fizesse ranger os dentes de raiva, impotente, Fiora não o repudiava. Philippe soubera manobrar engenhosamente o hábil comerciante que era Beltrami, para embaraçar a sua consciência com a recordação de um casamento mesmo desonroso que renegaria no dia seguinte. Era tão fácil esquecer aquela que com tanta desenvoltura ele condenara a definhar lentamente sem marido e sem filhos na vã sumptuosidade de um palácio florentino. O mais engraçado era que ele ignoraria, sem dúvida durante muito tempo, senão para sempre, o destino trágico da efémera condessa de Selongey...
Uma ideia súbita atravessou o espírito da jovem, excitado pela cólera e pela impotência: restava-lhe um meio, talvez, um único, de frustrar as intrigas do seu marido: Philippe levara o seu dote real, sabia-o, sob a forma de uma letra sobre o banco Fugger em Augsburgo, uma letra que, se calhar, ainda não tinha sido paga. Dentro de dois dias, antes de a mandarem entrar para o barco, acorrentada, proclamaria bem alto, diante dos Médícis, aquele casamento que os ofenderia, pedindo apenas, se ainda não fosse tarde, que a contrapartida em ouro dessa letra não fosse entregue. Assim, vingar-se-ia ao mesmo tempo de Philippe e desse Temerário, ao qual ele ousara sacrificá-la! Podia morrer tranquila!
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