Eu sei. Na noite anterior à sua morte, o vosso pai disse-me muitas coisas...
Das quais, se calhar, não vos podeis servir. Não sabemos o que vai ser de nós e é por vós que eu receio mais... Porque posso contar uma história diferente da de Hieronyma? Não receeis, eu sei defender-me. Além disso, acredito sinceramente que podeis contar com o senhor Lourenço. Ele parece decidido a apoiarvos, defendendo a memória do vosso pai...
É por isso que eu não posso proclamar o meu casamento com Philippe. Arriscar-me-ia a perder o meu último defensor. E o mais poderoso. Mas, lembrei-me agora: sabeis onde está Khatoun? Não a vejo desde que saímos de casa...
Ainda lá deve estar. Ela não queria assistir ao funeral de messer Francesco, porque teme tanto as cerimónias fúnebres como a própria morte...
Prefiro assim. Esta abominável Hieronyma, que nunca foi suficientemente rica para comprar um escravo, seria capaz de a vender em leilão público já amanhã, ou, pior ainda, acusá-la também de feitiçaria...
Estavam a chegar. A silhueta esmagadora do Palácio Velho, com as suas pedras salientes, o caminho de ronda e a alta e esguia torre de Arnolfo, que evocava vagamente uma flor-de-lis ainda em botão, erguia-se diante daquelas que bem podiam ser chamadas de prisioneiras. Uns criados em libré verde abriram-lhes as portas e elas subiram pela estreita escadaria que ia dar à sala do Conselho onde, dentro em pouco, se jogaria o destino de Fiora e daqueles que lhe permaneciam fiéis.
Ao transpor a porta baixa da grande sala, Léonarde benzeu-se e Fiora, quase maquinalmente, imitou-a. Agora, era preciso ir até ao fim. Mas onde estava o fim?
Segunda parte
O PESADELO
CAPÍTULO VII
O PÃO AMARGO
A cela era triste, cinzenta e quase nua: um colchão de palha, pousado sobre duas cruzes de madeira, um cobertor esburacado, um crucifixo na parede cuja brancura inicial sofrera os atentados da humidade, um escabelo para a prisioneira se sentar e um outro suportando uma bacia e duas toalhas rugosas e, por fim, um bacio por baixo da cama, compunha toda a decoração. Aquilo parecia-se tanto com uma prisão que, uma vez lá dentro, Fiora virou-se para protestar, mas já a porta, munida de um postigo gradeado, se fechava e ela pôde ouvir a chave girar na fechadura. Que significava aquilo?
A sessão na grande sala da Senhoria fora das mais agitadas. Perante os priores e o magistrado municipal, reunidos numa espécie de tribunal, Hieronyma repetira a sua acusação apoiada por Marino, que, sempre sem ousar levantar a cabeça, relatou o que vira em Dijon num lúgubre dia de Dezembro. Mas à sua maneira rancorosa: Francesco Beltrami teria matado o marido de Marie de Brévailles para lhe tirar a criança. Léonarde, então, metera-se. Traçou de Regnault du Hamel um retrato alucinante de maldade, que aumentava na mesma proporção a imagem radiosa dos jovens amantes malditos. Falou na emoção de Francesco Beltrami, na sua cólera perante o assassínio friamente decidido de uma criança de poucos dias. Falou no velho padre, no baptismo de Fiora num quarto da Cruz de Ouro e em todos os cuidados tomados pelo negociante florentino para garantir àquela pequenita, que ele amara instantaneamente, um futuro como o que todas as crianças deveriam ter ao chegarem a este mundo demasiado duro para a sua fraqueza. Ele tinha confiança naquele Marino, que agora o traía vilmente, a despeito das benesses recebidas, com uma mulher que, ao descer até ele, se desonrara.
Sim, Francesco Beltrami quisera que aquela criança do seu coração se tornasse sua filha aos olhos de todos e, ao declará-la como tal, mal mentira: não era ela, realmente, a filha bastarda de uma dama de sangue nobre?... Por fim, fina como era, Léonarde Mercet era a primeira vez que Fiora ouvia o nome todo da sua governanta terminara a sua arenga clamando para o servidor infiel a ira do Senhor e todas as piores maldições. Predisse-lhe noites sem sono, as 12 pragas do Egipto abatendo-se sobre ele e sobre os seus bens e, para concluir, a maldição até ao fim dos seus dias com a satisfação, puramente subjectiva, aliás, de ver o miserável encolher-se ao ouvir as suas palavras e perder o sangue-frio até cair de joelhos.
Lourenço de Médicis falara por sua vez, pedindo calorosamente pelo seu amigo defunto e pela juventude inocente da criança por ele eleita. Denunciara a rapacidade da dama Pazzi e o seu estranho comportamento, por, depois de um pedido de casamento recusado, ter obrigado a jovem a pedir justiça por um acto de que não tivera culpa. Infelizmente, cometera o erro de englobar todos os Pazzi, que detestava, no mesmo anátema e Petrucci chamara-lhe a atenção asperamente.
Para a Senhoria, que contava no seu seio com muitos amigos dos Médicis mas também com alguns dos seus inimigos, a situação era confusa e difícil de julgar. Ainda por cima porque o clero se tinha intrometido na pessoa do abade do convento de San Marco, para cujas celas, entretanto, enaltecidas pelos frescos de Angélico, Lourenço gostava de se retirar, mas que, como bom dominicano, se achava um ferrabrás de Satã e das suas criaturas. Ora, para esse monge intransigente, uma criança nascida de amores incestuosos e adúlteros só podia ser uma criatura do demónio, que nenhum baptismo poderia redimir, sendo que a água benta seria mais um sacrilégio.
A sua voz troante impressionou os «magníficos senhores», dos quais alguns eram almas simples e Fiora, por um instante terrível, perguntou a si própria se não iriam preparar para ela uma fogueira no Palácio Velho... Além de que, encorajada por uma ajuda inesperada, Hieronyma voltou a atacar mais venenosamente do que nunca, suplicando aos priores que não permitissem que um tal escândalo se espalhasse por mais tempo sob os céus de Florença, o que só poderia atrair mais perigos e maldições...
Era mais do que Fiora se sentia capaz de suportar. Levada pela cólera, enfrentou a sua inimiga a quem, com voz gelada, acusara de mandar assassinar o seu primo e de querer a sua perda para ficar com a herança fabulosa.
Então, foi o tumulto, a algazarra, a mais assombrosa das desordens. Os apoiantes de ambos os lados da causa injuriaram-se e quase chegaram a vias de facto. Foi preciso que Petrucci mandasse entrar a guarda para restabelecer um pouco de calma na sala que, para dizer a verdade, já vivera muitas situações semelhantes desde os tempos heróicos dos Guelfos e dos Gibelinos. Em Florença as pessoas gostavam quase tanto de zaragata como de festas, cortejos, grandes procissões e belas-artes. Era uma maneira como outra qualquer de provarem que, apesar do poderio dos Médicis, ainda estavam numa república.
Quando, por fim, se conseguiu um certo silêncio, os priores decidiram-se, depois de deliberarem rapidamente com Lourenço. Na impossibilidade de resolverem uma situação que nunca se apresentara à sua sagacidade, decidiram que o conjunto de bens de Francesco Beltrami seria posto sob sequestro enquanto se esperava um julgamento definitivo. Por outro lado, um administrador, cuja escolha foi deixada ao banco Médicis, seria nomeado para assegurar a continuação dos negócios do negociante defunto, para que pudesse ser garantido o trabalho aos seus numerosos empregados. Quanto a Fiora, que acusara sem provas, era passível de prisão, tal como lho deu a entender o sobrolho franzido de Lorenzo. Apesar das cautelas, fora demasiado longe e o Magnífico, apesar de toda a sua influência, teria dificuldade em salvá-la se os priores decidissem aplicar a lei em todo o seu rigor. Então, houve um instante de hesitação, mas que não durou muito. O abade de San Marco voltou à carga empurrando diante de si um monge que trazia, como ele, o hábito branco, o escapulário negro e a cruz de prata dos dominicanos:
Permiti Vossas Senhorias falou ele pelo nariz que vos apresente Frei Inácio Ortega, que vem da nossa casa de Valladolid, em Castela, que impôs a si próprio viajar por toda a cristandade, como em tempos o nosso santo fundador, para pregar o Evangelho e desmontar as armadilhas do Maligno. Frei Inácio, que é um especialista em matéria de diabruras, deseja propor-vos uma solução que talvez agrade a todos...
O recém-chegado apresentou-se como um homem de meia-idade, grande e um pouco curvado. Era quase calvo por completo e a sua alta fronte em forma de cúpula dominava o arco baixo das sobrancelhas.
Tinha um nariz poderoso, uma boca severa e uns olhos que, por trás das pálpebras, escondiam o olhar. A sua presença tinha qualquer coisa de pesado e sinistro, que todos, mais ou menos, sentiram. Convidado a exprimir-se, o monge avançou, as mãos escondidas nas mangas brancas do hábito, saudou como um homem que se sabe superior àqueles a quem se dirige e depois esperou.
Sede duplamente bem-vindo, frei Inácio disse o mais idoso dos priores, que fazia as funções de presidente. Escutamos Vossa Reverência com respeito.
O recém-chegado olhou à vez para Hieronyma e para Fiora, no rosto da qual se demorou um instante e depois, num toscano fácil, mas que a sua voz áspera tornava curiosamente desagradável, disse:
Estas duas mulheres odeiam-se demasiado para que seja possível tirar-lhes a verdade, mas existe um meio de descobrir essa verdade. Proponho que apelemos ao julgamento de Deus. Submetamo-las à prova da água!
Seguiu-se um grande silêncio. Numa cidade como Florença, onde a liberdade de espírito e as luzes da filosofia grega tinham adquirido direitos de cidadania ao ponto de inquietar muitas vezes a Igreja, o juízo de Deus não era muito utilizado, já que era considerado como uma prática de outras eras. De imediato, aliás, Lourenço protestou e todos puderam ver, pelo olhar irritado que lhe lançou, que o monge espanhol não lhe agradava mais do que a sua proposta:
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