Desta vez, a multidão rugiu. Hieronyma sabia o que estava a fazer ao evocar as práticas da feitiçaria e, com uma alegria maldosa, sentiu que estava quase a ganhar. Com um pouco de sorte, a multidão pegaria fogo e atirar-se-ia àquela Fiora que ela odiava e que, de mãos no rosto, se esforçava por nada ver, para a desfazer em pedaços... Mas Lourenço, a princípio surpreendido, não tencionava deixar-se levar assim por uma mulher histérica, nem que o povo, que reconhecia a sua autoridade porque o enriquecera, lhe dissesse qual era o seu dever. Por fim, porque detestava desde sempre os Pazzi, dos quais desconfiava como da peste.

Chega! gritou ele. Já disse e repito que esta cena em frente de uma igreja é escandalosa e que o funeral de um homem respeitado e admirado não deve servir de pretexto para um ajuste de contas. Se Francesco Beltrami desrespeitou, pelo que só pode ter sido um impulso do coração, as leis da nossa cidade, julgá-lo-emos mais tarde... Por agora...

Peço-te que me desculpes interrompeu Petrucci mas que queres dizer com esse «mais tarde»?

Quero dizer depois de Francesco Beltrami estar em repouso na tumba que o espera.

Aceitas, portanto, que logo a seguir aquela a quem chamamos sua filha, a governanta e a acusadora, assim como a testemunha desta sejam levadas à Senhoria para ali serem ouvidas e confrontadas?

O Magnífico hesitou. O seu olhar sombrio percorreu o seu grupo de amigos, de guardas e depois todas aquelas cabeças e rostos, onde podia ler a mesma hesitação. Viu Fiora em lágrimas, amparada por uma Léonarde lívida e por uma Chiara Albizzi cujos olhos faiscavam de cólera, mas já alguns gritos se ouviam um pouco por toda a parte:

Justiça! Que se cumpra a lei! e até, infelizmente À morte a feiticeira!

Lourenço compreendeu que não ganharia nada em se opor ao pedido do magistrado municipal. Sabia muito bem que devia o seu poder à adesão do maior número possível e que um assunto como aquele podia ser um excelente pretexto para uma rebelião.

Seja! disse ele por fim. Que se faça segundo a lei na nossa cidade.

Nesse caso, guardas da Senhoria, prendei estas mulheres e levaias para o palácio, onde elas aguardarão que seja estatuída a sua sorte!

Compreendendo então que lhe iam roubar o direito de acompanhar o seu pai bem-amado até à sua última morada, Fiora revoltou-se:

Eu quero gritou ela assistir ao funeral do meu pai! Ele era o que eu tinha de mais querido neste mundo...

Se ele não era teu pai troçou Petrucci não tens nada com isso!

Eu fui legalmente adoptada perante esta mesma Senhoria.

Mas, aparentemente, sob falsas declarações. E nós não gostamos de falsas declarações!

Talvez. No entanto, aceitais, como se fossem palavras do Evangelho, as acusações desta mulher, que ainda ontem pediu ao meu pai que me desse em casamento ao seu filho! A ignomínia do meu nascimento não pareceu incomodá-la muito em comparação com a fortuna que cobiçava... e que continua a cobiçar!

Isto é verdade? perguntou severamente Lourenço a Hieronyma.

É falso berrou ela. Não há nada mais falso! Eu, pertencente a uma nobre família...

Tu querias que eu fosse para tua casa como tua nora. A tua última visita, na véspera da morte do meu pai, teve testemunhas. A despeito das ameaças que proferiste, ele recusou casar-me com Piero... e, no dia seguinte, foi assassinado!

Hieronyma uivou como se uma serpente tivesse desenrolado os anéis a seus pés.

Tu ousas acusar-me, tu, uma larva miserável, que vais regressar em breve para o lodo de onde saíste?

Eu não acusei ninguém respondeu Fiora. Mas se a carapuça te serve, a culpa não é minha! Quanto à tua testemunha, vai buscála! Eu sei quem é: é Marino Betti, o intendente da nossa propriedade, um homem que o meu pai pensava ser fiel, que cumulou de benesses e que, dizem, é teu amante.

Enfurecida, pronta a bater-se diante de todos contra aquela mulher ignóbil que acabava de lançar a sua lama sobre o sudário imaculado do seu pai, Fiora ia lançar-se sobre ela com as garras todas de fora quando Lourenço a segurou e obrigou a ficar quieta:

A cólera cega-te, Fiora, mas tens de compreender que tudo o que acaba de ser dito é de uma extrema gravidade e que nem com a melhor vontade do mundo podemos deixar as coisas como estão. Submete-te de bom grado ao julgamento dos priores! Eu estarei lá, podes estar certa.

Então, também tu me recusas o direito de ficar ao pé dele até ao último instante? disse ela dolorosamente, apontando para o corpo que os seis notáveis, rígidos como se se tivessem transformado em pedra, mantinham aos ombros.

Deixa-me substituir-te! Quando tudo voltar ao normal poderás rezar sobre a sua tumba o tempo que quiseres...

Ela olhou-o nos olhos com um pequeno sorriso.

Depois do que acabas de ouvir, senhor Lourenço, continuas a desejar que eu me case com o teu primo? murmurou ela de maneira a ser ouvida apenas por ele. Luca diz que me ama... porém, vai-me deixar ir sozinha para um combate do qual depende a minha vida...

Fiora não falava sem razão. Uns minutos antes, ao chegar defronte do Duomo, avistara Luca Tornabuoni à esquerda de Giuliano de Médicis. Ele cobrira-a, então, de olhares apaixonados, mas agora tinha desaparecido. Por sua vez, Lourenço procurou o jovem com os olhos e ficou corado, bruscamente, por não o encontrar:

Peço-te perdão disse ele em voz baixa. Mas pode ser que esteja enganado... Talvez ele não tenha vindo. ”

Mentes muito mal, senhor Lourenço...

Ele estava aqui, com efeito disse subitamente a voz tranquila de Demétrios, que acabava de aparecer por trás do Magnífico. Mas eu vi-o partir subitamente, quando esta mulher falou do teu nascimento, donna Fiora. Creio que se lembrou, de repente, que um dos seus cavalos estava doente e reclamava os seus cuidados...

Então, que fazemos? impacientou-se Petrucci.

Fiora virou-se para ele depois de ter chamado Léonarde para o pé de si.

Deixemo-nos conduzir à Senhoria... magnífico senhor! Esperarei lá a decisão dos nobres priores. Mas não te esqueças de exigir que essa mulher apresente a sua testemunha!

A testemunha em questão não estava, naturalmente, longe. Saiu da multidão de olhos no chão e aproximou-se daquela que diziam sua amante. Fiora perguntou-lhe, sarcástica:

Não receias que a sombra do meu pai te venha atormentar as noites, fiel Marino? No teu lugar, tinha cuidado...

O homem não respondeu e pareceu curvar-se sobre si mesmo. Mas já os guardas da Senhoria os rodeavam, a ele e a Hieronyma, assim como também rodearam Fiora e Léonarde. O clérigo, desorientado pelo que acabava de acontecer, reapareceu sob o pórtico para retomar a cabeça do cortejo. Os carregadores, visivelmente cansados, recomeçaram a marcha e Fiora, imóvel de braço dado com Léonarde entre quatro soldados, viu desaparecer sob o mármore do portal a silhueta branca do seu pai, que era forçada a deixar ir assim, despojada do único amor real que ela lhe inspirava.

O sargento que comandava os soldados esperou que a igreja se enchesse, mas esta não podia conter aquela enorme multidão e tiveram que deixar as portas abertas. Não sem pena, Fiora conseguiu que Chiara se afastasse. Indignada com o que acabava de ver e ouvir, a jovem recusava-se ferozmente a abandonar a sua amiga. Pretendia que a conduzissem também a ela à Senhoria como testemunha e talvez Fiora não tivesse conseguido impedi-la, se o seu tio Giorgio Albizzi não a tivesse segurado pelo braço:

Vem! ordenou ele secamente. O teu lugar não é aqui.

A despeito da sua coragem, Fiora sentiu as lágrimas subirem-lhe aos olhos face àquela fria manifestação de desprezo. Albizzi fora amigo de Francesco e no entanto, à primeira acusação, afastava-se, retirando a Fiora um dos seus mais fiéis apoios. Por entre as lágrimas, a jovem viu desaparecer no meio da multidão que agora olhava para ela com a curiosidade habitualmente reservada para a jaula dos leões, o pequeno rosto em pranto da sua única amiga.

A jovem virou-se e, dirigindo-se ao sargento que comandava a sua guarda:

Então? perguntou ela rudemente. Que esperas para nos levares?

Aquela soberba criatura tinha uma tal autoridade que o soldado, atrapalhado, respondeu-lhe:

Às tuas ordens!

Puseram-se em marcha através da multidão, que se afastou diante deles. Pelas portas abertas do Duomo, as notas tempestuosas do Requiem acabavam de rasgar o ar.

Após um instante de hesitação, a maior parte da assistência, achando o funeral bem menos interessante do que aquilo que se ia seguir, seguiu-lhes as pisadas. A distância não era grande do Duomo ao Palácio Velho, sede da Senhoria que se aproximava dos dois séculos de existência e, pela via Calzaiuoli a rua dos fabricantes de meias percorreram-na rapidamente. Apoiada no braço de Léonarde, Fiora sentia reforçar-se nela a impressão absurda de ter deixado um mundo agradável, doce e cuidadosamente arranjado, por um outro, ameaçador e estranho, povoado de visões hostis e bocas escarrando injúrias. Todas aquelas pessoas, que ainda no dia anterior a saudavam com um cumprimento, um sorriso ou mesmo alguns-versos, se tinham transformado, ao ouvir a voz vingativa de Hieronyma, em outros tantos inimigos, que talvez a tivessem lapidado sem a barreira de ferro com que a tinham rodeado.

Por que razão murmurou Léonarde, que se esforçava por não ouvir as injúrias que assinalavam o seu percurso por que razão não lhes dizeis que não sois desta cidade, que, pelo casamento, sois uma nobre dama da nossa Borgonha?

Porque não tenho qualquer prova do meu casamento. Não sei onde pôs o meu pai os papéis...