Uma hora mais tarde, Fiora, vestida até ao queixo de negro baço e com um véu sobre os cabelos severamente entrançados, esperava junto do seu pai, no quarto que haviam decorado de negro, a visita do senhor de Florença. Segundo o costume da República, que queria todos os cidadãos iguais na morte, o corpo de Francesco Beltrami fora vestido com um simples tecido branco forrado de tafetá e um gorro sem qualquer ornamento na cabeça. Nem jóias, nem qualquer sinal de riqueza. Por baixo tinham-lhe posto a enxerga obrigatória, mas essa enxerga estava sobre o grande leito cor de púrpura, que, na decoração fúnebre, gritava como uma enorme mancha de sangue, na qual a brancura do defunto figurava como reflexo. Dois círios apenas, mas muito grossos, ardiam de cada lado do leito transformado em catafalco. Arderiam assim até à hora do funeral, no qual o corpo, unicamente coberto por um pano branco, seria levado à sua sepultura. Única derrogação da lei, que fazia do cemitério comunal o único local do último repouso, Beltrami, o mais poderoso dos da arte de Calimala, seria enterrado na igreja de Orsanmichele, que era a da corporação.
Fiora já não chorava. O fogo que ardia nela tinha-lhe secado as lágrimas e não permitia que elas corressem. Quando o Magnífico entrou, acompanhado dos seus amigos Poliziano e Ridolfi, a jovem atirou-se-lhe aos pés:
Justiça, senhor Lourenço! Justiça para o meu pai assassinado dentro da tua cidade! Eu, sua filha, não terei descanso até que o seu assassino caia nas tuas mãos soberanas!
Curvando a sua alta estatura, o Magnífico segurou nas mãos suplicantes que se estendiam para ele.
Eu, Lourenço, não terei descanso enquanto o assassino não balançar, pendurado pelos pés, na varanda da Senhoria! Levanta-te, Fiora!
O teu pai era um dos melhores da nossa cidade e era meu amigo. Prometo-te vingança...
Segurando sempre Fiora pela mão, o Magnífico avançou para o corpo, que contemplou por um instante. A chama dos círios cinzelava o perfil nítido de Francesco, que, na morte, parecia ter reencontrado a juventude.
Quem quer ser feliz, apressa-se murmurou ele porque ninguém sabe o dia de amanhã! Francesco possuía tudo o que pode fazer um homem feliz e, no entanto, uma mão suficientemente criminosa e cobarde matou pelas costas aquele que nunca tinha feito mal a ninguém. Quem será o dono dessa mão?
Acabas de o dizer, senhor: um cobarde que, sem dúvida, não agiu por conta própria.
Que significa isso?
Que se pode armar alguém quando não temos coragem para o fazermos nós próprios. Os rufias não faltam, dizem, nos bairros de má fama e tudo se compra, mesmo a vida humana. Tudo depende do preço que se pretende pagar...
Lourenço olhou para Fiora com uma atenção que o fez semicerrar os olhos míopes:
Estás a pensar em alguém? Sabes que uma acusação sem provas é uma coisa que pode ser punida por lei?
Não acusarei ninguém enquanto não tiver provas. Mas então...
Então, será a mim que dirá respeito disse Lourenço severamente. Depois, mais docemente: Agora, estás só, Fiora e és muito jovem para tanta solidão. O teu pai não desejava casar-te ainda, mas agora precisas de um companheiro. Não só porque herdas uma grande fortuna, mas também devido a negócios complexos. A afinação dos tecidos não chegava a Francesco. A eles juntou um banco, navios, dos quais dois estão fundeados em Veneza, sem contar com o Santa Maria del Fiore, o seu barco pessoal, que está atracado naquele pequeno porto de Livorno, do qual ele desejava, eu sei, fazer um grande porto mercante, uma mina de alúmen em Volteira e também casas em Paris, Londres, Bruges... e talvez outras coisas, que eu ignoro. Precisas de um homem à cabeça disso tudo... e eu sei que o meu jovem primo Luca Tornabuoni está profundamente apaixonado por ti. Pensarás nisso... mais tarde, quando a tua dor for menos viva?
Mais tarde... talvez. Por agora não quero casar-me.
A jovem ficou surpreendida com a firmeza com que aquela mentira acabava de passar pela sua boca. Nem sequer tinha corado ao dar esperança ao Magnífico naquele casamento impossível com o seu primo, mas, por outro lado, sentia-se um pouco chocada com a pressa posta por Lourenço na candidatura de Luca. O desgosto, para ele, era uma coisa e os negócios outra e desejava, evidentemente, ver o pequeno reino de Beltrami unir-se aos bens, já imensos, da sua família.
Depois de se ter inclinado de novo perante os despojos mortais do seu amigo, Lourenço saudou Fiora e dirigiu-se para a porta, mas, subitamente, virou-se:
Terás tu alguma razão para temeres pela tua própria vida, tu que és a única filha de Francesco? Até esta manhã não tinha respondeu a jovem. Mas, agora, já não sei.
Todas as precauções são boas. Vou mandar-te Savaglio com alguns guardas.
Agradeço-te, mas valerá a pena? Não podes manter esta casa guardada indefinidamente. E eu estou rodeada de criados fiéis. Pelo menos, acho que sim...
De qualquer maneira, a presença de homens armados leva a desencorajar certas tentativas e precisamos de tempo para encontrar o assassino. Não saias até ao funeral, que terá lugar depois de amanhã. Naturalmente, estaremos lá todos...
Agradeço-te do fundo do coração. A tua protecção e amizade são-me preciosas, senhor Lourenço...
Poderão ser impotentes para te preservar, se não escolhes rapidamente um marido...
Ele não disse mais nada, mas Fiora sabia que ele era tenaz. Voltaria certamente à carga e seria preciso, um dia, dizer-lhe a verdade. Por outro lado, tinha razão quando dizia que era necessário um homem à cabeça dos negócios de Beltrami e Fiora lamentou a sua ignorância. Se fosse um rapaz, o seu pai, dois ou três anos antes, teria começado a iniciá-lo na sua obra, a fim de que, mais tarde, pudesse assumir a sucessão, mas ela, tão sabedora noutras matérias, não sabia grande coisa das difíceis transacções comerciais. A morte, tão brutal e prematura do seu pai deixara-a desarmada...
O senhor Lourenço é sábio e só quer a vossa felicidade disse por trás dela a voz tranquila de Léonarde...
Na condição de que essa felicidade esteja de acordo com o interesse dos seus. Por outras palavras, que eu case com Luca...
O que é impossível por agora, mas talvez haja uma solução. Por que não pedir ao senhor Lourenço que ponha alguém inteligente, alguém de toda a confiança na direcção dos vossos negócios? Ele ficaria, certamente, lisonjeado e isso permitir-vos-ia iludir, por algum tempo, o seu projecto de casamento. Aliás, o vosso luto não permitirá acender, antes de muitos meses, os archotes de um noivado.
O conselho é sábio. Depois de o meu pai... sair desta casa para sempre, falarei nisso a Lourenço de Médicis.
O lúgubre protocolo mortuário já estava em campo. Os anunciadores da morte percorriam a cidade, parando nos mercados para proclamar o óbito de Francesco Beltrami, ao mesmo tempo que os encarregados das pompas fúnebres escolhiam as carpideiras entre as mulheres pobres dos bairros de má fama. Entregavam-lhes grandes vestidos com capuzes de fazenda negra, cosidos de maneira a poderem em seguida fazer deles trajes decentes, mas nenhum fausto devia presidir às exéquias, porque não convinha fazer de um funeral uma festa. Todo o brilho da cerimónia estaria reservado para aqueles que iam assistir a ela e só seriam servidos, na refeição tradicional, dois pratos.
As visitas afluíam à casa. Amigos e simples curiosos chegavam continuamente, porque a notícia da morte trágica do negociante não esperara pelos anunciadores para se difundir. Percorrera a cidade com a velocidade do vento, as pessoas amontoavam-se na rua para poderem saudar o corpo e entrar, aqueles que nunca tinham tido oportunidade, no palácio Beltrami, satisfazendo o seu desejo de contemplar todas aquelas riquezas. Felizmente para Fiora, o capitão Savaglio, que Lourenço havia posto de guarda à sua casa, efectuava uma separação que nem sempre era isenta de brutalidade.
Se eu não puser ordem nisto confiou ele a Léonarde, que lho dera a entender todas as putas e rufias da cidade desfilarão pela vossa casa. Vestem à vez um vestido ou um fato conveniente e aparecem beatificamente, porque a ocasião para visitar uma casa rica é demasiado bela para perder. Infelizmente para eles, conheço-os quase todos!
Luca Tornabuoni acorreu no rasto do Magnífico. Fiora, já na defensiva, esperava grandes protestos de amor e até um imediato pedido de casamento, mas o jovem, após ter saudado o defunto, inclinou-se profundamente perante a jovem, contentando-se em dizer-lhe:
Chamai-me se precisardes dos serviços de um amigo fiel, que gostaria infinitamente de poder apaziguar, por pouco que seja, o vosso desgosto.
Ela ficou-lhe reconhecida e, espontaneamente, estendeu-lhe a mão.
Obrigada, Luca! Não me esquecerei...
Para sua grande surpresa, Simonetta e Marco Vespucci, flanqueados pelo primo Amerigo, também apareceram. Branca e radiosa como era seu hábito, a despeito do vestido escuro que trazia por respeito, a Estrela de Génova beijou Fiora com uma gentileza e uma emoção que comoveram a jovem.
Em breve sentir-vos-eis muito só neste grande palácio disse-lhe ela. Por que não vindes viver algum tempo para junto de mim? Nós nunca falámos muito uma com a outra, mas eu gostaria que vísseis em mim uma irmã mais velha, ou, pelo menos, uma amiga verdadeira...
Fiora retribuiu-lhe o beijo com sinceridade e até com um pouco de vergonha. Como detestara aquela jovem maravilhosa, na qual se obstinara a ver uma rival dois meses antes!... Ou dois séculos antes!. Na verdade, nada impedia que a esposa, se bem que desdenhada, de Philippe de Selongey, se tornasse amiga de Simonetta. E a jovem sentiu subitamente uma grande pena ao recordar a profecia do grego, desejando de todo o seu coração que não se cumprisse...
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