Incapaz de se conter por mais tempo, Francesco deixou-se levar pela cólera:

E tu és capaz de apresentar a tua testemunha? Não te esqueças de uma coisa, Hieronyma. Correm rumores acerca de ti. Diz-se que não respeitas a tua viuvez, assim como a casa do teu sogro. Basta que Marino Betti confesse que é teu amante e poderás saber quanto pesa a justiça pessoal do velho Jacopo. Ele não brinca no capítulo da honra.

Mas talvez fique feliz por ver entrar para a família Pazzi uma fortuna da importância da tua. Ele já não é assim tão rico e suporta-o mas. Creio que me ajudaria, pelo contrário, com todas as suas forças... mas, claro está, o casamento não se realizaria. Não o admitiria. Simplesmente, depois da tua condenação e privação dos teus bens, que me seriam entregues como tua herdeira natural, a tua Fiora seria entregue a Piero, para que ele se divertisse... após o que nos desembaraçaríamos dela atirando-a para um bordel! Como vês, tens todo o interesse em aceitar a minha proposta. Em seguida, prometo-te que formaremos uma família feliz... e sem história!

Sai daqui!... Fora da minha vista!

Decididamente, não és razoável. Mas eu penso que uma longa noite de reflexão te fará ver onde está o teu interesse. Amanhã, por volta desta hora, virei buscar a resposta. Desejo-te uma boa noite.

Um arrepio de horror galvanizou Fiora e devolveu-lhe as forças. Compreendendo que a mulher ia sair e não querendo ser surpreendida à escuta, escondeu-se por trás de uma tapeçaria, reprimindo ao máximo os batimentos do seu coração. Um suor frio molhava-lhe a fronte e as costas, como se o abismo terrível do inferno acabasse de se abrir na sua frente. Afastando ligeiramente a pesada tapeçaria, viu Hieronyma sair da sala do Órgão, sem pressa. Segura da sua vitória, pavoneava-se com arrogância, pousando sobre os móveis e objectos preciosos, pelos quais passava, um olhar ávido de proprietária.

Pela primeira vez na sua jovem vida, Fiora sentiu vontade de matar, de destruir aquela mulher odiosa, percebendo por que razão a ameaçara em casa de Landucci. Saindo sem ruído do seu esconderijo, pegou num pesado candelabro de bronze e avançou lentamente na direcção de Hieronyma, que parara para admirar as peças de joalharia dispostas em cima de uma credencia, mas, como se tivesse adivinhado que um perigo se aproximava, a dama Pazzi saiu bruscamente da sala sem se virar, no momento exacto em que Beltrami entrava nela.

O negociante viu Fiora armada, prestes a lançar-se atrás de Hieronyma e compreendeu o que ela queria fazer. Exclamou:

Não Fiora! Não faças isso!

É ela ou nós, pai! Deixa-me fazê-lo!

Então, ele correu para ela, arrancou-lhe o candelabro e depositou-o em cima de uma arca. Desesperada, Fiora viu que ele envelhecera dez anos e que havia lágrimas nos seus olhos. Então, atirou-se-lhe ao pescoço e apertou-o contra si, chorando ambos sobre o que a abominável Hieronyma acabava de destruir, de sujar. Foi ali que Léonarde, que procurava Fiora, os encontrou.

Que se passou? perguntou ela. Acabo de me cruzar com donna Hieronyma e ela ordenou-me, chamando-me de velha alcoviteira, que começasse a fazer as malas!

Estamos à beira da catástrofe, minha pobre Léonarde disse Beltrami. Aquela mulher é amante de Marino. Ele disse-lhe tudo e está pronto a testemunhar contra mim... a menos, evidentemente, que eu case Fiora com o filho dela!

Mas ela já é casada, parece-me? É preciso dizer-lho.

Isso é a última coisa a fazer. Resta-me uma ténue esperança de salvação, que é ir contar tudo a monsenhor Lourenço. Tem respeito e amizade por mim, ao passo que detesta os Pazzi. Evidentemente, o casamento torná-lo-ia furioso, mas isso não lhe vou eu dizer...

Fiora, que se mantivera abraçada a Beltrami, afastou-se dele e olhou-o com uns olhos plenos de angústia:

Pai!... É verdade que não sou tua filha? É verdade que nasci...

Ouviste tudo?

Tudo! Eu estava ali, perto da porta, que estava entreaberta. Oh, pai! Foi terrível e eu creio que agora ainda é pior! Eu, que me sentia tão feliz por ser tua filha! E agora não sou nada... menos que nada! O mais pobre dos mendigos tem o direito de me desprezar, o...

Cala-te, Fiora! Por amor de Deus, cala-te! Enquanto não souberes tudo, não podes julgar. Quanto a mim, és minha filha porque te quis e reconheci... e porque te amo! Vem, vem comigo! Vamos para o studiolo! É diante da imagem da tua mãe que te quero dizer a verdade. É uma história triste e dolorosa, que Léonarde conhece bem, mas que eu preciso de te contar. Vem, minha filha!

Rodeando os ombros de Fiora com o braço, Francesco levou-a docemente pela galeria até à pequena sala íntima e acolhedora, na qual reinava o sorriso de Marie de Brévailles. Léonarde seguiu-os e mandou embora Khatoun, que esperava à porta com a ansiedade no rosto, porque havia lágrimas nos olhos de Fiora, e Fiora nunca chorava:

Espera por ela no quarto! Ela já lá vai ter. Eu sigo-te daqui a pouco.

Eu preferia que viésseis connosco, Léonarde disse Beltrami. Duas memórias valem mais do que uma quando procuramos não esquecer nada...

Então, juntos, entraram no studiolo. Francesco retirou o pano de veludo que cobria o retrato de Marie e foi sentar-se por trás da sua mesa, indicando uma cadeira a Léonarde. Fiora preferiu instalar-se numa almofada aos pés do pai.

Vais precisar de coragem, minha querida, porque eu vou-te contar uma história terrível, mas, ao mesmo tempo, uma história maravilhosa e enternecedora, da qual o ódio de Hieronyma apenas reteve os traços mais horríveis... Lembras-te daquele chapeuzinho de renda que te mostrei e que Sandro Botticelli reproduziu neste retrato? Tu reparaste numas manchas de sangue e eu não quis responder às tuas perguntas.

Disseste que me responderias mais tarde, quando eu fosse mulher. Eu agora já sou uma mulher.

Ainda não me habituei disse Francesco, acariciando-lhe os cabelos sedosos. Mas, nesse dia, menti-te. Não tinha intenção de te contar a verdade, fosse quando fosse, porque queria que ela desaparecesse comigo e com Léonarde. Entre os dois, essa verdade estava bem guardada. Foi preciso a traição de um homem que eu pensava ser fiel...

As gentes de Montughi e da região murmuram que essa Hieronyma tem o fogo no rabo grunhiu Léonarde. Nós falámos disso, Jeanette e eu, mas o marido mandou-nos calar com medo do sogro. Talvez fosse bom informá-lo sobre a conduta da nora?

Eu ameacei a minha prima, mas ela não teve medo. Ela sabe que, entre a sua má conduta e a perspectiva de pôr a mão nos meus bens, o velho pirata não hesitará... deixa o castigo para mais tarde. Uma coisa em que ela, de qualquer maneira, devia pensar. Mas, para nós, o mal está feito.

Pai pediu Fiora deixemos essa mulher onde está! Vós fizestes-me vir aqui para me contardes a história da minha mãe e tudo o que sei é que ela morreu tragicamente. Dizeis-me como?

No cadafalso, com o pescoço cortado ao mesmo tempo que o teu verdadeiro pai. Chamavam-se Marie e Jean de Brévailles...

Eu já ouvi falar nesse nome...

Por favor, Fiora, não me interrompas mais. Já é suficientemente penoso reviver essas horas, em que tudo mudou para mim.

Em sinal de arrependimento, Fiora beijou a mão do seu pai e depois guardou-a entre as suas, ao mesmo tempo que este, com os olhos postos no retrato, começava a sua história:

Durante as minhas noites sem sono, revejo muitas vezes os pormenores daquele dia de Dezembro, cinzento e frio, em que entrei na cidade de Dijon, que é a capital dos duques da Borgonha. Uma bela cidade, que eu conhecia bem e onde gostava de ficar...

Pouco a pouco, a voz do contador, a princípio um pouco sufocada, afirmou-se e recuperou a sua cor. Poeta como quase todos os florentinos, Francesco tinha o dom da palavra e o sentido da evocação. Diante dos olhos das duas mulheres que o escutavam traçou, com uma segurança espantosa, o quadro daquela praça coberta por uma multidão silenciosa, enquanto o sino tocava a finados. Com uma dor que lhe fazia vibrar a voz, evocou o casal de jovens condenados, tão belos, tão radiosos na miserável carroça do carrasco que pareciam «marchar para o seu triunfo», a silhueta aflita do velho padre, a do carrasco, sinistra, a emoção dos assistentes e a desordem da sua alma face à morte daquela jovem delicada. Falou de Regnault du Hamel, cujo nome encheu, ao passar, a sua boca de amargura com o seu ódio e crueldade impiedosa. Repetiu o relato de Antoine Charruet com uma emoção que lhe fez tremer a voz, ao evocar o calvário suportado por Marie na casa do seu marido e os esforços desesperados da sua mãe para obter uma graça que lhe foi, por duas vezes, impiedosamente recusada. Por fim, disse como salvara o bebé da morte, como decidira fazer dele sua filha e como Léonarde, espontaneamente, se oferecera para velar pela pequenita privada de mãe.

Quando ele acabou, Léonarde chorava, mas os olhos de Fiora brilhavam de cólera e indignação:

Toda aquela gente merecia mais a morte do que... os meus pobres pais! Esse du Hamel primeiro, que não passava de um miserável e depois esse pai, que não quis defender os seus filhos. Por fim esse duque Filipe e esse conde de Charolais, que não souberam ter piedade, que quiseram que a execução fosse pública e aquela fossa ignóbil, que vergonha!

O duque Filipe morreu, Fiora. Quanto ao conde de Charolais, é agora o duque Carlos, o Temerário, a quem messire de Selongey votou uma fidelidade absoluta...

A recordação do nome do seu marido trouxe Fiora de volta ao presente.

Philippe!... Foi ele que me falou de Jean de Brévailles! Conheceu-o, quando ele próprio era pajem do conde de Charolais e a sua parecença comigo admirou-o... Ele... também sabia?