CAPÍTULO V
HIERONYMA
Tu mudaste, Fiora... Há dias que te observo e de cada vez isso me parece mais evidente. Tinha que to dizer, hoje.
Fiora sorriu para a sua amiga. O rosto gentil de Chiara tinha, com efeito, uma ruga de preocupação, que lhe era pouco usual e que lhe dava uma certa gravidade.
Em que é que eu mudei assim tanto?
Ris-te menos do que antigamente e vejo que por vezes, quando estamos juntas, pareces pensar noutra coisa. Não respondes às perguntas que te faço, ou então respondes por portas e travessas. Mas há outra coisa mais grave...
Mais grave? O que é, meu Deus?
Antes de ontem, quando, perto do Baptistério, estávamos a ouvir a história do contador de fábulas, Giuliano de Médicis, que estava de passagem com alguns amigos, veio cumprimentar-nos. Habitualmente, quando o vias ficavas vermelha como um tomate. Desta vez, mal olhaste para ele, o que o deixou vexado, creio.
Ora, e eu ralada. Para que precisa ele da atenção e admiração de todas as mulheres se as suas vão exclusivamente para Simonetta? É só presunção, mais nada!
Que linguagem é essa? Já não o amas?
Eu amei-o alguma vez? Creio... que me agradava. Mas agora já não... pelo menos já não tanto.
Deixando a sua amiga especada de espanto, Fiora deu alguns passos na direcção do murete de pedras baixas, de onde se via toda a cidade de Florença e para lá. As duas amigas, escoltadas pelas suas governantas e por Khatoun, tinham saído a cavalo para se dirigirem a San Miniato, como sempre que chegava a Primavera, para colher violetas e espinheiros-alvar, que cresciam em abundância em redor da igreja de San Miniato al Monte e do palácio dos Bispos. As jovens diziam que elas eram ali mais belas, naquele local bendito, do que noutros locais e que, dali do alto, tinham a impressão de que toda a cidade se abria como uma gigantesca flor. À luz nova da Primavera, Florença parecia acumular beleza como um avarento acumula o seu ouro: um pouco mais, se bem que já haja muito...
Fiora teria preferido fazer aquele passeio tradicional com Philippe, contemplar com ele, para além da longa fita loura do Arno cheia de pontes que pareciam prestes a afundar-se sob a acumulação de lojas, a confusão de telhas vermelhas sobre o ocre-quente, o cinzento-suave ou o branco-leitoso das paredes. Era como que um tapete de rosas, de onde emergiam jóias: o Duomo, uma bolha de coral pousada sobre uma manta de retalhos brilhante, uma flor-de-lis de prata jamais desabrochada por completo sobre o palácio dos Senhores, espirais de coralina cujas seteiras tinham o ar de borboletas e campanários que se pareciam com círios de Páscoa na alegria dos seus mármores polícronos. E depois, um pouco por toda a parte, a verdura nova dos jardins, onde desabrochavam as glicínias e os lilás, os loureiros e as camélias, porque em parte nenhuma, no mundo, a Primavera era mais bela do que em Florença... nem mais maravilhosa de admirar do que de mão dada com o seu marido e regressar depois com ele ao cair da tarde e sob um Sol poente glorioso como o de Fiesole, prelúdio de uma noite de amor. Mas Philippe estava longe, a centenas de léguas dos seus braços e Fiora nem sequer tinha a consolação de saber onde ele estava exactamente.
Há já dois meses que ele tinha deixado a villa Beltrami, dois meses que poderiam muito bem ser dois séculos, porque Fiora nunca achara o tempo tão vagaroso. Após os três dias que passara fechada no quarto sem consentir em sair, sem ver outra pessoa que não Khatoun, que lhe levava as refeições e sem permitir que lhe mudassem sequer os lençóis onde Philippe a amara, consentira, por fim, em sair quando Léonarde aparecera para lhe dizer que o seu pai se preparava para partir para Veneza. Não podia deixar que ele se fosse embora sem o abraçar.
Quando o reencontrou e viu virar-se para ela aquele rosto pálido de olhos tristes como nunca tinha visto antes, teve vergonha de si própria e da sua reclusão egoísta. Devia puni-lo só porque a sua felicidade desaparecera? Então, cedendo ao impulso da sua ternura filial, caíra-lhe nos braços e tinham ficado longos momentos abraçados, chorando os dois lágrimas diferentes, mas que, ao fim e ao cabo, os uniam...
Ama-lo assim tanto? perguntara Francesco com a voz sem entoação. Ama-lo ao ponto de já não me amares a mim?
Não te amar? Oh, pai, espero que nunca tenhas acreditado em semelhante coisa? Ninguém, nunca, te poderá substituir no meu coração. Ele é diferente... é meu marido. Não é a mesma coisa. E peço-te perdão por estes três dias, mas eu não queria que me visses chorar...
Mas tu estás a chorar neste momento, Fiora... e eu também. Não achas que o desgosto se suporta melhor quando o partilhamos?
É por isso que partes? Para melhor o partilhar? Ou queres-me punir?
Não. É porque Lourenço de Médicis, tendo descoberto a minha amizade por Bernardo Bembo, me pediu para ir ter com ele por alguns dias. Não me peças que te diga porquê...
Teria sido incapaz. Aquela viagem, com efeito, não passava de um pretexto para se poder afastar por algum tempo de Fiora, para tentar voltar a ser ele próprio longe de um olhar que podia ser demasiado perspicaz. Tinha necessidade de colocar alguma distância entre ambos, para melhor se habituar àquela nova Fiora que entrevira à chuva numa manhã de dor: uma mulher ardente e apaixonada, que se entregara de corpo e alma a outro...
Por seu lado, a jovem acolhia com uma secreta satisfação aquela curta separação. Percebera que aquele casamento não era de todo agradável ao seu pai e que não teria qualquer prazer em ouvi-la, a ela, cantar elogios, ao longo do dia, a um marido perfeito.
Beltrami partiu, portanto e Fiora, tendo regressado como desejava ao palácio nas margens do Arno, pôde dar-se à alegria de cantar o seu amor por Philippe, para benefício, apenas, dos ouvidos de Léonarde e Khatoun. Depois, acalmou-se. Após o desgosto da partida e a alegria retrospectiva, Fiora entrou na espera do regresso que desejava próximo, °u, pelo menos, de uma mensagem. Permaneceu longas horas no seu quarto, ou no jardim, escutando Khatoun que cantava para ela e contemplando o grosso anel de ouro batido com as armas dos Selongey, que Philippe lhe enfiara no dedo ao tomá-la como esposa. Era demasiado largo para o seu dedo delgado e como não era possível mandá-lo estreitar por um joalheiro, ou sequer usá-lo em público, a jovem metera-o num delgado e longo fio de ouro, que lhe permitia escondê-lo sob os vestidos. O anel pendia-lhe entre os seios e ela gostava, quando não lhe era possível tirá-lo, apoiar-lhe a mão em cima, para melhor sentir a sua presença.
Quando Francesco regressara da sua viagem, ela oferecera-lhe, para o seu beijo, uma fronte serena e a vida recomeçara, como no passado, na casa dos Beltrami. Só, Léonarde dera um grande suspiro de alívio ao constatar que depois de mais de um mês, a jovem não apresentava qualquer sinal de maternidade...
Chiara respeitou por um momento a meditação da sua amiga. Aliás, ela própria precisava de pôr os seus pensamentos em ordem. Aproveitou para aumentar ainda mais um grande ramo de violetas que já tinha nas mãos e depois, achando que o silêncio já ia longo, lançou uma olhadela a Léonarde e a Colomba, que, sentadas à sombra de um pinheiro, conversavam sem parar, ao mesmo tempo que mantinham os dedos vagamente ocupados com um bordado. E meteu o braço no da sua amiga:
Já sonhaste o suficiente? perguntou ela alegremente. Contemplas a nossa bela cidade como se a visses pela última vez.
Devias dizer, como se a visse pela primeira vez. Já viemos aqui muitas vezes por esta altura, mas este ano Florença tem um encanto diferente. Até as muralhas e as torres de vigia parecem participar da beleza geral. Gostaria...
De estar aqui com outra pessoa que não uma velha amiga! É exactamente o que eu penso: já não estás apaixonada por Giuliano porque estás apaixonada por outro... por outro que está longe! E aposto que é por messire Philippe de Selongey!
Inesperado, aquele nome, doravante o seu, atingiu Fiora tão repentinamente que ela estremeceu e corou.
Fala mais baixo, por favor! Ou melhor: não fales de todo!
É assim tão grave? murmurou Chiara elucidada. Desculpa-me! Pensava que era uma paixoneta passageira, como tantas outras que temos e que desaparecem com o vento, como a que tiveste por Giuliano. Sabes, ao menos, se voltas a vê-lo?
Creio que sim disse Fiora com um sorriso que se dirigia mais aos seus próprios pensamentos do que à amiga. E agora falemos de outra coisa! Aliás, não são horas de voltarmos? Já temos flores suficientes para duas ou três igrejas!
Elas costumavam, com efeito, oferecer todos os anos a sua recolha a Santa Maria del Fiore, acrescentando à sua oferenda perfumada um generoso donativo para as crianças pobres, das quais se ocupavam os curas da catedral. Iam, portanto, juntar-se a Colomba e a Léonarde, que, por seu lado, já juntavam as suas coisas, quando, subitamente, Fiora deteve a sua amiga.
Espera! disse ela com a voz oprimida...
Que é que se passa? Estás doente?
Não... não, mas tenho uma sensação bizarra... Há pouco, disseste que eu estava a olhar para a cidade como se a visse pela última vez...
Sim... mas foi uma brincadeira. Disse aquilo porque tu tinhas uma expressão de avidez... como se quisesses absorver aquilo tudo com os olhos. E tu respondeste-me...
Eu sei... mas agora pergunto a mim própria se não terás tido razão. Sinto qualquer coisa que me diz... que não regressarei a este local!
Que loucura! Continuas a pensar na profecia do médico grego?
Não. Juro-te que não... nem sequer pensei nele... mas tive como que um pressentimento, como se Florença se me tornasse, subitamente, hostil... me rejeitasse, a mim, que a amo tanto!
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