Tudo se ia passar na grande villa que Beltrami possuía em Fiesole, de noite, quase em segredo, para que os Médicis ignorassem aquele casamento que poderia ofender as suas amizades e escolhas políticas. E Philippe tinha pressa. Amava demasiado Fiora para aceitar afastar-se dela sem se assegurar que nenhum outro homem, nunca, lha tiraria...
Teria sido a mesma coisa depois do noivado observara a jovem e mesmo sem outro compromisso que não a minha palavra. Teria bastado que me pedísseis para esperar. Eu teria esperado... a vida inteira.
Talvez tenhais que o fazer durante a vida inteira. Eu posso morrer, Fiora e nunca mais voltar. Foi por isso que quis este casamento, cuja rapidez vos assusta tanto, talvez. Eu quero, depois de partir, ficar certo de que sois minha. Sentis assim tanta falta dos faustos de um casamento em pleno dia?
Sentiria, sobretudo, se não tivésseis essa pressa. Sentiria se não me amásseis...
Estava tudo dito. Há uma hora que Beltrami e o seu futuro genro estavam fechados no gabinete do negociante com um notário que era amigo seguro. Discutiam o severo contrato que Beltrami entendia assegurar à sua filha. No seu quarto, Fiora entregava-se aos cuidados das mulheres. Léonarde, de rosto hermético e Khatoun, cujos dedos tremiam de excitação, tinham-na vestido com um belo vestido de seda branca, todo bordado a ouro. Na massa dos seus cabelos, penteados ao alto, tinham penteado estrelas de esmeraldas e entrançado uma fina grinalda dourada e na orla do decote, entre os seios juvenis, Léonarde tinha pregado um dragão com olhos de esmeralda, cujas asas abertas estavam matizadas com as mesmas pedras. Dentro em pouco colocar-lhe-iam na cabeça o grande véu que tinham mandado abençoar nessa mesma manhã no mosteiro vizinho, segundo as regras...
Desde que lhe haviam anunciado o casamento de Fiora, a velha governanta não deixara de cerrar os dentes, mas passara longas horas na igreja. A Fiora, que a repreendera por não mostrar alegria ao vê-la unir-se a um grande senhor da Borgonha que também era o seu país, Léonarde tinha respondido: |
Eu sei que é um grande senhor e eu conheço bem o castelo de Selongey, uma poderosa fortaleza e uma nobre casa. Eu sei que casais com um homem valente e que junto dele ficareis altamente colocada. Eu sei...
Sabeis que o amo... e que ele me ama?
- Tinha que ser, para atabalhoar assim um casamento em dois dias e confesso-vos, compreendo mal como o vosso pai, um homem tão sensato, tão cuidadoso, deu o seu acordo a semelhante...
Loucura? Eu creio que o meu pai sabe que de uma loucura pode nascer uma grande felicidade.
Léonarde não respondera mais nada, mas corara um pouco. Melhor do que ninguém, ela sabia que Francesco Beltrami era capaz de actos aparentemente insensatos e tentara falar-lhe, mas, escusando-se a qualquer explicação, o negociante fora impossível de encontrar, como se tivesse fugido. Assim, a velha dama escolhera o silêncio... mas Khatoun falava pelas duas.
A pequena tártara não se cansava de gabar a magnificência do noivo e predizer à sua jovem patroa um universo de amor, ao mesmo tempo que cantava, acompanhada por um alaúde, todas as canções do seu repertório. Tinha prometido, sem hesitar, não revelar a ninguém o que se ia passar e Fiora sabia que ela preferiria deixar-se matar a trair um segredo confiado ao seu coração.
O mais penoso, para Fiora, era não poder dizer nada à sua amiga Chiara. Teria gostado, pelo menos, de ter aquela rapariga encantadora junto de si quando o seu casamento fosse abençoado. Teria gostado de poder partilhar com Chiara toda aquela alegria, toda aquela felicidade que transbordava do seu coração, mas Beltrami mostrara-se intratável:
Não te esqueças que a Colomba dela é a língua mais ágil da cidade! Confiar-lhe um segredo é partilhá-lo com as correntes de ar. Além disso, lembra-te que os Albizzi foram durante muito tempo mais ricos e poderosos do que os Médicis, que estiveram exilados e que não seria nada bom metê-los neste casamento. Alguns poderiam achar isso estranho.
Não terei, portanto, nunca, o direito de usar diante de todos o nome do meu marido? Gostava tanto...
Que saibam que és condessa? perguntou Beltrami, sorrindo.
Não. Que saibam que sou «sua» mulher...
Isso há-de vir, descansa! E talvez mais depressa do que julgas. Quero apenas um certo tempo, para o anunciar eu próprio ao Magnífico. Será mais fácil se ele acreditar que te casaste... sem eu saber!
Dessa vez, Fiora compreendera. Conhecia suficientemente bem os Médícis para saber a que ponto eles eram ciosos da sua autoridade, ainda por cima porque não lhes fora legalmente concedida. E deixou-se ir na alegria de, em breve, ser de Philippe. Mas, à medida que a hora se aproximava, o seu coração batia cada vez mais depressa...
A jovem sonhava, de pé junto de uma janela de onde se via o jardim em terraços e, mais abaixo, Florença, estendida como um tapete cinzento e rosa aos pés da antiga acrópole etrusca e romana, que fora Fiesole. Do esplendor de outrora só restava uma cerca de muralhas ciclópicas meio arruinada e muitas pedras, provenientes do que fora um teatro. Havia vestígios em quase todos os jardins que eram muitos, porque, se Fiesole deixara de ser uma cidadela guerreira, continuava a ser um lugar de prazer e certamente o lugar mais encantador dos arredores de Florença. Mesmo quando os jardins, como naquele começo de Fevereiro, não tinham flores, restava a doçura das colinas que sublinhavam os fusos negros dos ciprestes e dos teixos, as cores esbatidas da terra e das oliveiras prateadas, cujos muretes de pedras ruivas retinham as raízes torcidas, a elegância de algumas casas patrícias e, na pequena praça daquilo que mais não era do que uma aldeia grande, o contraste encantador de uma velha catedral romana de campanário ameado junto de um gracioso palácio novo.
O Sol pusera-se numa glória púrpura anunciadora de vento, deixando um reflexo nos telhados do pequeno convento franciscano que coroava a colina e onde estava conservado o corpo do grande Santo António, que toda a Florença venerava. Era na sua capela que, chegada a noite, Fiora e Philippe seriam casados pelo venerável abade...
Selongey, o seu escudeiro Mathieu de Frames, que lhe serviria de testemunha e os homens que compunham a sua escolta tinham transposto as portas de Florença de manhã sem espírito de regresso. Por um caminho desviado tinham atingido a villa de Beltrami e entrado nela pela porta de serviço, onde iam esperar a sua verdadeira partida, prevista para o dia seguinte de madrugada. Sós, os dois nobres tinham entrado na casa, mas o que Fiora ignorava era que no cofre do seu pai repousava já uma carta de crédito de cem mil florins de ouro, pagáveis no banco Fugger de Augsburgo e que representava o seu dote quase real...
Durante muito tempo, Fiora permaneceu ali, vendo morrer o dia e a noite invadir pouco a pouco o maravilhoso quadro, deixando apenas visíveis alguns pontos luminosos, fogueiras nas muralhas, ou luzes diversas. Compunham um prolongamento do céu, onde se acendiam as primeiras estrelas. Aquela noite que caía fazia cair, também, uma cortina sobre os dias despreocupados de uma infância feliz e o dia seguinte, quando voltasse, iluminaria um ser novo, nascido da misteriosa magia do amor.
Tal como a maioria das raparigas do seu tempo, Fiora sabia que não era a bênção do casamento que fazia desabrochar a mulher, mas sim a união de dois corpos e que essa união, pelo menos no princípio, podia ser dolorosa, insuportável por vezes, quando o acto do amor se transformava em violação, como tantas vezes ouvira contar nos relatos dos desacatos provocados pouco tempo antes em Volterra e Prato pelos mercenários de Florença. A jovem não receava nada de semelhante da parte de um homem que a amava e ao qual ela se sentia feliz por se oferecer, porque lhe bastara um beijo para a conquistar.
A entrada silenciosa de Léonarde veio, no entanto, pôr fim ao seu sonho. A governanta trazia com ela o véu com que envolveu a jovem e uma grande capa negra com capuz, sob a qual desapareceu o vestido brilhante.
Chegou a hora! disse ela. Vinde! Esperam-vos... Depois, bruscamente, a governanta agarrou Fiora pelos ombros e abraçou-a com uma enorme ternura.
Espero que sejais feliz, meu cordeirinho e, sobretudo, que o sejais durante muito tempo.
Nunca me senti tão feliz! murmurou Fiora, sincera. Messire Philippe não tem tudo o que é preciso para assegurar essa felicidade?
Tem, mas é um soldado e isso não simplifica as coisas. Tereis de suportar longas ausências...
Os regressos serão, assim, maravilhosos! E agora vamos, visto que nos esperam.
Léonarde não respondeu, contentando-se em abrir a porta diante daquela criança que ela acreditava conhecer tão bem e que parecia mudar a cada instante. Aquele casamento, decididamente, agradava-lhe cada vez menos, mas sabia-se impotente para travar a roda do destino posta em marcha tão bruscamente.
Quatro silhuetas negras, as de Beltrami, de Philippe, do seu amigo Prames e do notário Buenaventura esperavam no pórtico de entrada. Quando as duas mulheres se lhes juntaram, o negociante pegou na mão da filha e dirigiu-se para a entrada dos jardins, mergulhados na obscuridade. Nenhuma luz iluminava o caminho, mas a noite não estava demasiado escura e permitia que se deslocassem sem acidentes.
Transpostos os limites da propriedade, encontraram rapidamente a vereda que ia dar ao mosteiro. Não se ouvia qualquer barulho. Todo o campo estava silencioso, como se retivesse a respiração. Não se ouvia, nem o voo de uma ave, nem o ladrar de um cão, nem a passagem pela erva de um dos numerosos habitantes dos campos. Sob os amplos mantos que os cobriam, os seis passeantes pareciam um grupo de fantasmas... Fiora, essa, deslocava-se como num sonho...
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