Também na política? Duvido. É um erro grave opor-se ao todo-poderoso duque da Borgonha...
Não vos quero contrariar, messire de Selongey, mas maior erro seria romper a aliança com o rei Luís de França, que é, talvez, o político mais fino do seu tempo!
Aquele miserável figurão? disse desdenhosamente o conde. Aquilo não é um cavaleiro.
Quando se tem a seu cargo um reino que durante cem anos conheceu a ocupação inglesa, mais vale ser um grande diplomata do que um cavaleiro sem mácula. O rei Luís tem coragem. Demonstrou-o em variadíssimas ocasiões.
Vejo que o admirais muito. Posso aconselhar-vos... como futuro genro, a que mudeis de amizades enquanto ainda é tempo? Em Julho último, o rei Eduardo IV de Inglaterra assinou com o duque Carlos um tratado, pelo qual o inglês se obriga a vir a França com um exército, ao mesmo tempo que a Borgonha se juntará a ele com dez mil homens antes do próximo 1 de Julho. Messire Luís será varrido e Eduardo será coroado rei de França em Reims como o exige a justiça.
Mas não a História! O vosso senhor deixará que o inglês cinja a coroa de São Luís, de quem ele próprio descende? A meu ver, seria um erro grave. Ter reconhecido em tempos o jovem Henrique, em detrimento de Carlos VII, não trouxe sorte ao duque Filipe, o Bom... O céu pode muito bem enviar uma outra Joana d’Arc... e, de qualquer maneira, nunca é bom uma pessoa enganar-se no rei. Enfim, Luís XI ainda não disse a sua última palavra. Podeis ter a certeza que monsenhor Lourenço não ignora nada disso... e ele recusou ajudar o vosso senhor!
E então, está enganado! Não vos esqueçais que a própria irmã de Luís XI, a duquesa Yolanda de Sabóia é aliada da Borgonha, em proveito de quem concluiu uma aliança com o duque«de Milão... que é vosso aliado.
Mas não nosso amigo. Que belo aliado arranjastes! Galeazzo Maria é um cabeça de vento que de Sforza só tem o nome, sem nenhuma parecença com o seu pai, o grande Francesco, que era amigo de Luís XI. Todos os seus pensamentos giram em redor da sua favorita, a bela Lúcia Marliani e nas cartas que escreve a monsenhor Lourenço só fala de certos rubis, que pertencem aos Médicis e que o milanês quer para a sua amante. O vosso duque vai ter uma surpresa...
Quem não as tem quando se trata de uma mulher? Consciente, de repente, do que dissera, Selongey corou e calou-se.
Os dois homens chegavam à vista do portão do palácio Beltrami, iluminado por duas lanternas metidas em jaulas de ferro e cujas chamas se curvavam e separavam sob o vento frio que soprava pelas ruas. Francesco ergueu o pesado batente de bronze representando uma cabeça de leão. Ao cair, este ressoou com um som amplo e profundo. E depois, quando a porta se abriu pela mão de um criado, Beltrami afastou-se para dar passagem àquele hóspede inesperado:
Resta saber para qual de nós será a surpresa disse o negociante gravemente.
A hora do jantar aproximava-se e Fiora esperava o seu pai na grande sala onde, diante do fogo flamejante da chaminé, a mesa estava posta. Sentada junto de um tabuleiro de ébano, marfim e ouro, jogava com Khatoun no silêncio religioso que se impunha para o mais sábio dos jogos e nem sequer ouviu o ligeiro rangido da porta a abrir-se para os dois homens. Apenas Léonarde, que bordava junto das duas jovens levantou a cabeça, mas, com um gesto, Beltrami impôs-lhe silêncio para poder contemplar por um instante o quadro encantador composto pelas duas jogadoras...
O fogo agarrava-se, com os seus reflexos vivos, às tranças lustrosas de Fiora, à jóia de ouro que lhe pendia da fronte e às pregas do seu vestido de cendal, de um vermelho-profundo. As suas pestanas negras, docemente curvas, punham uma sombra doce no veludo das suas faces e os seus dentes brancos, que mordiscavam um dos seus dedos afilados, brilharam por instantes por entre os lábios frescos. Na sua frente, Khatoun, vestida com uma túnica e um véu de um alegre azul-canário, parecia um pequeno génio de um conto oriental.
Beltrami, o coração apertado por uma súbita angústia, teria querido reter indefinidamente aquele minuto de paz, aquele instante de luz, que protegiam ainda a quietude da sua vida de pai satisfeito. Não precisava de se virar para adivinhar com que olhos ardentes o estrangeiro olhava para a sua filha. Como era possível que, ainda há pouco uma criança, já suscitasse a paixão de um homem?... Pela primeira vez olhou para Fiora com olhos diferentes, demorando-se na finura da sua cintura, na harmonia delicada do pescoço moldado pelo tecido cintilante, na sua pele sedosa de um marfim rosado tão suave, na delicadeza de uma mão fina pegando numa peça preciosa... O pensamento de que um homem podia pretender possuir aquele milagre de graça e beleza, tornou-se-lhe subitamente intolerável. Sentiu uma vontade brutal de chamar os seus criados para que pusessem na rua o insolente pretendente... mas Khatoun tinha visto os dois homens e, com um gesto ligeiro, apontou para eles. Fiora levantou os olhos e empurrou a cadeira para trás...
Pai repreendeu-o ela alegremente parece-me que vens tarde e que...
Subitamente, ela reconheceu Philippe, cuja estatura dominava a de Beltrami e uma vaga de sangue purpurou-lhe as faces. Para esconder a sua perturbação, esboçou uma reverência.
Ignorava que teríamos um hóspede murmurou ela. Devias ter-nos prevenido.
A minha visita é absolutamente imprevista disse suavemente Philippe e suplico-vos, demoiselle, que me perdoeis por vos encontrar desprevenida. De qualquer maneira, não serei vosso... hóspede durante muito tempo.
Deixai-nos, dame Léonarde disse Beltrami brevemente. Tu também, Khatoun...
Com os olhos plenos de interrogações mudas, as duas mulheres saíram sem uma palavra, deixando Fiora só face aos dois homens. Quando a porta se fechou, Beltrami aproximou-se, pegou na filha pela mão e conduziu-a até à cadeira que ela acabava de abandonar.
Senta-te, minha filha disse ele docemente. O que temos para te dizer é grave... de uma extrema importância para o futuro...
O que... vós... tendes para me dizer? Sois, portanto, dois a falar?
Com efeito...
Beltrami sentiu um nó na garganta e engoliu em seco nervosamente. Chegara o instante terrível, aquele instante que deixara que lhe impusessem, porque aquele homem conhecia o seu segredo... E de repente, teve pressa de acabar. Tudo era preferível à incerteza. Aliás, Fiora mal conhecia Selongey, nunca aceitaria casar com ele... Ia, com um sorriso, recusar, como recusava as homenagens de Luca Tornabuoni. Não pensara que estava apaixonada por Giuliano de Médicis? Então, com uma voz clara, disse:
Messire Philippe de Selongey, que vês aqui, veio esta noite pedir-me a tua mão...
Mal pronunciou aquelas palavras, Beltrami teve vontade de as retirar. Fiora acolheu-as com uma imensa surpresa nos olhos, mas já uma luz se acendia, uma luz que o magoava muito...
Vós quereis... casar comigo? perguntou a jovem. Vivamente, Selongey pôs um joelho em terra:
Não há nada que eu mais deseje disse ele com voz vibrante. O que o vosso pai não disse, Fiora, é que vos amo e que nunca amarei mais ninguém.
Nunca?... Senão eu?
Enquanto viver! Dou a minha palavra de cavaleiro perante Deus, que receberá os nossos votos se aceitardes ser minha!
Fiora olhou para o rosto arrogante virado para si, para aqueles olhos cuja chama a queimava, para aqueles lábios cujo beijo a atormentava, para aquela grande mão que se estendia para a sua. A jovem procurou o olhar do seu pai, mas Beltrami desviou-o. Philippe acrescentou, mais baixo, mas mais ardentemente:
Respondei, Fiora! Quereis ser minha mulher?
Uma alegria imensa invadiu a jovem. Era como uma daquelas grandes vagas azuis, deliciosas e tépidas, nas quais, em Livorno, se banhara num dia de Verão. O sonho começado sob as abóbadas severas de Santa Trinita continuava e, desta vez, não teria fim. Com um gesto encantador e espontâneo, ela colocou as suas duas mãos nas que se lhe ofereciam:
Quero disse ela firmemente... sim, quero!
Francesco Beltrami fechou os olhos por um instante, para não ver Philippe beijar ternamente os pequenos dedos daquela que passava a ser a sua noiva. Estava tudo dito e era preciso ir até ao fim. A surpresa fora para ele... Batendo subitamente com as mãos, o negociante chamou com voz forte:
Vinho! Tragam vinho!
Não se devia celebrar com uma libação o próximo casamento de Fiora? Mas, pela primeira vez desde há muito tempo, Francesco Beltrami tinha vontade de chorar...
CAPÍTULO IV
A NOITE DE FIESOLE
Dois dias depois, à mesma hora, Fiora, de coração apertado, esperava o momento em que, para sempre, seria unida ao homem que amava e que entrara na sua vida como um furacão. Tudo fora tão rápido que a cabeça ainda lhe andava um pouco à roda...
Quando dera a sua mão a Philippe, pensava que iriam celebrar o noivado e que depois o seu futuro marido voltaria a partir para combater ao lado do seu duque. Terminada a guerra, regressaria para consagrar o casamento e, finalmente, levá-la para o seu país a fim de a apresentar na corte do Grande Duque do Ocidente. Imaginava já as bodas faustosas, que seriam as da filha única do rico Francesco Beltrami...
E eis que nada se parecia com os seus sonhos de infância, que nada seria conforme a tradição. Nem sequer haveria um grande jantar para a imposição do anel, símbolo da união, nem troca de presentes. Os jovens não estenderiam pela sua rua a fita ou a grinalda de flores, ao mesmo tempo que um deles, o mais belo, lhe ofereceria um ramo, após o que o noivo poderia romper o frágil obstáculo. Não haveria um cortejo de damas para escoltar a noiva até ao Duomo, enquanto na loggia do Bigallo, perto do Baptistério, as trombetas soariam o triunfo do amor. Não haveria um grande banquete ao som da música, não haveria baile, não haveria nozes atiradas para as lajes do chão perto da câmara nupcial para impedir que se ouvisse o que se passaria lá dentro, não haveria brincadeiras, risos, fábulas para alegrar as pessoas, romances...
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