Philippe ficou lívido e, maquinalmente, levou a mão aos copos da espada que trazia à cintura:

Insultais-me!

Não. Trato-vos segundo o que mereceis! E agora, saí! Não tereis de mim um único florim!

De pé face a face, estavam tão próximos, que um podia sentir o hálito um pouco ofegante do outro, mas o objectivo de Selongey não era encostar aquele homem à parede. Virou-se, afastou-se na direcção da janela que dava para a praça agora quase na escuridão e, por um instante, observou o vaivém dos habitantes daquela cidade estranha, onde a nobreza de nascimento não significava nada e não tinha, obrigatoriamente, direito ao respeito. Apenas o dinheiro contava e o homem que estava na sua frente era um dos mais ricos.

Disse-vos que saísseis! repetiu Beltrami com uma voz onde havia algum cansaço...

Não. Eu exprimi-me mal e peço-vos perdão. Esperava, com efeito, interessar o homem de negócios que sois nos do meu senhor, que é o mais nobre príncipe do Ocidente. Ele ter-vos-ia reconhecido regiamente... à altura da coroa que cingirá um dia. Mas não foi unicamente isso que vos vim pedir esta noite...

Que quereis, então?

Que me concedais a mão da vossa filha. Quero desposá-la...

O espanto deixou o negociante sem voz e com a impressão desagradável de que as paredes começavam a girar à sua volta. Foi até um armário dissimulado na parede e tirou dele um frasco de vinho de Chiantt e uma taça de prata, que encheu e esvaziou quase com um único movimento. Sentiu-se, então, melhor para afrontar a nova batalha que se aproximava.

Meu Deus! observou Philippe com um meio sorriso. Não esperava causar-vos uma tal emoção!

Deixai a minha emoção em paz. Quereis casar com Fiora? Vós?

Sim, eu.

Quando acabais de me dizer que ignorais tudo sobre as suas origens, nobres sem dúvida, mas manchadas infamemente pela mão do carrasco?... Pelo menos segundo as leis do vosso país e da vossa casta.

Segundo as leis de todos os países e de todas as castas. Acreditais que a vossa fortuna seria capaz de a salvar do desprezo se se soubesse aqui, nesta república incrível, que ela é fruto de um incesto e de um adultério que terminou no cadafalso, condenado ao mesmo tempo pela Igreja e pelo príncipe?

Francesco Beltrami sentiu um arrepio gelado ao longo da espinha e voltou para o fogo como para um amigo seguro. Aquele demónio tinha razão e sabia-o.

E vós disse ele amargamente investido da confiança de um grande príncipe, vós, conde de Selongey, cavaleiro do Tosão de Ouro vós, que sois sem dúvida um dos primeiros no vosso país, quereis por mulher esta criança, cuja nascença, vós mesmo dizeis, está marcada pela infâmia. Porquê?

Não procurarei esconder-vos a verdade disse Selongey rudemente. Primeiro, porque a amo... Ora vamos! Vós só a vistes duas vezes: na giostra e no palácio Médicis...

Encontrei-a uma terceira vez na igreja da Santa Trindade. Mas um só encontro era suficiente. A sua beleza... apertou-me o coração. Foi como se tivesse ficado encantado...

E pensais que isso é amor? Que basta um instante para...

Mudar a vida de um homem? Devíeis ser o último a duvidar disso. Ou então, explicai-me por que razão vós, jovem, rico, livre de qualquer laço, carregastes a vossa vida com a filha de uma gente que não conhecíeis, que apenas entrevistes na hora da morte? Marie de Brévailles era muito bela, não é verdade? E vós viste-la morrer...

Beltrami fechou os olhos, tentando reter as lágrimas que lhe vinham aos olhos ao recordar aquela hora terrível, em que o amor da sua vida tinha sido fulminado. Enxugou-os com as costas de uma mão raivosa...

Falastes de duas razões... Qual é a segunda?

Quero o seu dote para as armas de monsenhor Carlos! Seguiu-se um silêncio, rompido ao cabo de um instante pelo riso sem alegria de Beltrami:

Eis finalmente a grande palavra. O dinheiro! Mas não vos darei Fiora. Não vos deixarei levá-la para o vosso bárbaro país, que só a esmagaria. Ela é uma flor delicada, criada sob o sol, com cuidados infinitos. Até aqui só conheceu a alegria, a beleza, as artes, as letras e até as ciências. Ela tem a sabedoria e o coração de uma rainha. Enquanto eu for vivo, esta obra feita com as minhas mãos e com a minha ternura não será destruída. Recuso separar-me dela.

Mas eu não vos separarei dela. Tal nunca foi minha intenção disse Philippe docemente.

Não compreendo. Que quereis dizer?

Nós estamos em guerra e esta guerra é sem quartel. Borgonha vencerá ou desaparecerá. Em tais condições, é impossível levar uma mulher comigo. Onde estaria ela melhor, senão junto do seu pai? Se ma concederdes, casar-nos-emos secretamente, mas sem que seja possível contestar o casamento. No dia seguinte, partirei... e nunca mais me vereis.

Cada vez compreendo menos! Ainda há um instante faláveis do vosso amor...

Que é profundo... e ardente, mas, sem dúvida, eu vou morrer. Quereis que vos diga mais claramente os termos do contrato que quero assinar convosco? Fiora terá o meu nome, o que a porá ao abrigo de um outro reconhecimento sempre possível. Será condessa de Selongey, mas viverá convosco e usará luto por mim quando chegar a hora...

E vós, que tereis vós, já que quereis entregar o seu dote ao vosso duque?

Uma noite de amor! Uma única noite, da qual levarei a recordação como um tesouro, ou que talvez me exorcize de uma paixão que me queima. Declarareis o casamento quando muito bem vos parecer. Bastante tarde, sem dúvida, se quereis evitar o ressentimento dos Médicis, cuja atitude é uma declaração de inimizade para com Borgonha. Foi por isso que falei num casamento secreto. Depois da minha morte, Fiora poderá, se quiser, voltar a casar...

A vossa morte, a vossa morte! Ela ainda não está escrita. Por que quereis tanto morrer?

Porque quero apagar do meu sangue a nódoa com que vou manchar as minhas armas ao casar com a filha de Jean e Marie de Brévailles. Serei o único a saber dessa nódoa, porque não tenho família. Ela desaparecerá comigo e em poucas horas darei tanto amor àquela que será minha mulher, que ela nunca saberá nada. A sua vida permanecerá a mesma junto de vós e eu terei tudo o que podia esperar deste mundo...

Esqueceis uma coisa: dessa única noite pode nascer um filho!

Nesse caso, educá-lo-eis até que tenha idade para pegar em armas e servir os seus príncipes. Então, enviá-lo-eis ao castelo de Selongey com todos os meios para se fazer reconhecer e eu ficarei em paz, porque será o sinal de que os meus antepassados me perdoaram o que vou fazer...

Que rapaz estranho! Francesco sentia-se confuso com aquela mistura de cinismo e inocência, com aquela alma feudal plena de paixão e certeza, capaz de tudo sacrificar ao seu senhor e aos seus próprios desejos, mas decidida a pagar o preço, mesmo que esse preço signifique a vida...

Que ides fazer? Eu ainda não aceitei o vosso pacto.

Mas ides aceitar. Sabei que estou pronto a tudo, entendeis, para conseguir Fiora, para que seja minha. Enquanto eu for vivo, ela não será de mais ninguém.

Até onde sois capaz de ir? Até dardes a conhecer a todos a verdade do seu nascimento? Far-vos-íeis retalhar imediatamente...

Talvez, mas vós não vos ergueríeis do escândalo. Seríeis obrigado a fechá-la num convento. Mais vale aceitar, messire Beltrami e vós sabei-lo bem. Ficais seguro, assim, de que ela nunca vos deixará. Isso deve ter um preço aos vossos olhos...

Francesco sentiu-se corar. Aquele homem tocara com o dedo no ponto sensível, aquela repugnância que ele tinha de ver, um dia, a sua filha bem-amada ir para longe, nos braços de um marido que nunca saberia amá-la como o seu pai... Sabia que o cavaleiro borgonhês ganhara, mas não queria ainda chegar a acordo:

O vosso amor é terrível, senhor conde! Não tenho razão nenhuma para supor que a minha filha se queira acomodar. E eu não a forçarei nunca...

Por que não lhe perguntais? Se ela aceitar...

Nesse caso, também aceitarei disse Beltrami gravemente mas sabei que ficareis ligado a um compromisso que vos será impossível quebrar... no caso de, mais tarde, mudardes de opinião.

Eis o comerciante que reaparece! disse Selongey com um sorriso de desdém. Eu só tenho uma palavra, messire Beltrami. Uma vez dada, não recuo.

Nesse caso, vamos a minha casa!

Lado a lado, caminharam pelas ruas, Philippe levando o seu cavalo pela rédea, que deixara à porta da casa de comércio. Nunca caminhara tanto desde que chegara a Florença. As pessoas daquela cidade pareciam preferir caminhar a qualquer outro meio de locomoção. Era verdade que as ruas, com uma valeta de cada lado, estavam limpas a maior parte do tempo, mas era curioso ver os grandes homens da cidade deslocarem-se

sem qualquer decência, como as pessoas do povo. Aquilo devia vir, sobretudo, do gosto extremo que todos tinham pela conversação. Nunca deviam estar certos do tempo que demoravam para ir de um local para outro, porque nunca sabiam que pessoas encontrariam e quantos minutos lhes consagrariam.

Entre o Mercato Nuovo e o palácio das margens do Arno, o borgonhês ouviu, mais de 20 vezes, os passantes saudarem o seu companheiro.

Uma boa noite para ti, messer Francesco! Deus te guarde e te mantenha próspero! Saúde para messer Francesco e todos aqueles que ama!... As fórmulas eram diversas, mas todas reflectiam respeito e até afeição.

Não vos sabia tão popular observou Selongey mas, por que é que aqui todos se tratam por tu?

Dir-se-ia que estais em Roma? O latim ignora o tratamento por vós e o latim permanece aqui a língua dos poetas e dos sábios. A nossa língua vulgar não passa de um derivado do latim, tal como o francês, aliás e monsenhor Lourenço, que começou a fazer versos em toscano, esforça-se por lhe dar a devida nobreza. E não há dúvida de que o conseguirá, porque é um grande artista em todas as coisas...