Desejoso de aliviar uma atmosfera que julgava nefasta para o seu comércio, o bom Landucci ofereceu às suas damas um dedo de vinho de Chipre, para as fazer esquecer o momento desagradável que acabavam de viver em sua casa.

Eu achei isto divertido disse Chiara.

Eu não! disse o boticário. Donna Hieronyma bem pode procurar outro fornecedor. Não a receberei mais.

Nesse caso, não há qualquer razão para que eu não compre essa cor encarnada? perguntou Cornelia, que não perdia de vista a causa da batalha. Conquistei-a com luta, parece-me.

Também me parece disse Landucci, rindo. E ordenou a um dos seus rapazes que embrulhasse o pequeno frasco.

Depois das compras feitas, Fiora e Léonarde, Chiara e Colomba separaram-se. Já era tarde e se o palácio Beltrami era próximo, o caminho ainda era longo para as habitantes do palácio Albizzi. A noite estava a chegar. Cornelia Donati partiu com Chiara e Colomba, ao mesmo tempo que o boticário dava ordem aos seus criados para fecharem a loja. Ele tinha que ir à Senhoria, a fim de se encontrar com o prior do seu bairro para uma questão delicada: o seu vizinho da casa funerária tinha-se arrogado o direito de vender certas drogas destinadas ao embalsamento dos seus clientes, drogas essas que faziam parte da exclusiva actividade do boticário. Landucci tinha de se despachar, porque aquele prior era seu amigo e talvez não estivesse apto a socorrê-lo dentro de

15 dias. Com efeito, os priores só eram eleitos por dois meses, circunstância que fazia Florença viver numa perpétua agitação eleitoral...

Também tenho que ver messer Francesco confiou ele a Fiora à guisa de adeus mas vou amanhã aos entrepostos dele na via Calimala... Certamente que ele me apoiará.

O Ângelus soou, acompanhado pelo estalido de centenas de taipais de madeira que, um pouco por toda a parte, os comerciantes ou os seus rapazes aplicavam sobre as portas das lojas. Os elegantes passeantes da ponte Santa Trinita começaram a abandonar o local para se dirigirem a outros locais de divertimento. Um grupo barulhento rodeou um homem jovem, pequeno e magro, mas vestido rebuscadamente com uma casaca de cetim branco sobre uns calções de veludo branco com renda prateada. Uma capa, botinas e um gorro de veludo rosa, este último enfeitado com uma grande pluma de garça-real, compunham um fato diante do qual todos os outros estavam extasiados. Com uma corrente de ouro da qual pendia uma pesada medalha e dedos em todos os anéis, o jovem elegante avançava com passos contados, virando a cabeça para todos os lados, para ver se recolhia suficiente tributo de admiração.

Fiora também o vira. Puxando bruscamente Léonarde pela manga, fê-la passar consigo sob o arco de uma casa, abrigada por uma estreita ruela.

Que vos deu? protestou a velha dama.

Não vedes o que está a acontecer além? Aquele vaidoso do Domenico Accaiuoli com o seu bando de cortesãos?

Que vos fez ele? Pensava que era um dos vossos amigos? Ele não vos fez a corte?

Achais que aquela espécie de rapaz sabe fazer a corte a uma rapariga? Far-me-ia melhor a corte se eu fosse um rapaz como ele. Ele quer uma esposa afortunada, sem dúvida, mas não tenho a certeza de que conseguisse fazer-lhe filhos. Em todo o caso, a pobre não o veria muitas vezes transpor a porta do seu quarto...

Atordoada, Léonarde olhou para Fiora com a expressão de uma galinha que se apercebe, subitamente, que chocou um pato:

Onde fostes buscar isso? Não fui eu que vos ensinei essas coisas! Fiora pôs-se a rir e apertou com mais força contra si o braço da governanta. ”

Vós sois demasiado decente! Foi Chiara que me disse. O seu primo Tommaso faz parte do bando de Domenico. E, entre raparigas, diz-se...

Com efeito, vejo que sabeis mais coisas do que eu imaginava disse Léonarde vagamente escandalizada.

Não façais essa cara! Não gostais mais de Domenico do que eu o detesto. Podeis ficar certa de que, quando me casar, será com um homem digno desse nome.

Instantaneamente, o seu espírito evocou a poderosa silhueta de Philippe de Selongey e, ao recordar o beijo que recebera, sentiu um pequeno arrepio já familiar. Experimentava-o sempre que evocava aqueles momentos inolvidáveis que a tinham perturbado, aqueles momentos que nunca mais, sem dúvida, voltaria a sentir...

Se não vedes inconveniente, talvez seja melhor voltarmos para casa rabujou Léonarde o caminho parece livre. E está tanto frio nesta ruela; sem contar com os odores das latrinas. Pelo menos, messer Domenico cheira bem...

Ambas saíram do seu esconderijo e retomaram o caminho:

Demasiado bem disse Fiora. A mãe dele e as irmãs não andam tão perfumadas. Um homem deve cheirar a sabão, sem dúvida, mas também a couro, a erva fresca... e até um pouco a cavalo acrescentou ela sonhadoramente, dando livre curso às suas recordações e esquecendo que não estava só.

Também foi donna Chiara que vos ensinou isso? perguntou Léonarde cada vez mais siderada.

Não disse Fiora sorrindo ingenuamente à sua doce recordação. É apenas o que eu penso.

Enquanto isso, numa grande casa ocupando o ângulo da via Calimala e do Mercato Nuovo, desenrolava-se uma cena estranha no primeiro andar, na grande sala severamente apainelada de carvalho escuro, de onde Francesco Beltrami dirigia os seus numerosos e importantes negócios: uma dessas cenas em que o freio da cortesia retém a violência dos sentimentos e não lhe permite, senão, que se traduza em palavras. Sentado numa cadeira de couro de espaldar por trás da grande mesa iluminada por um candelabro de bronze de seis braços, o negociante afrontava Philippe de Selongey, que, de braços cruzados no peito, se mantinha simplesmente encostado a um armário.

Os dois homens observavam-se como dois duelistas, os olhos de um, dourados pelo reflexo das chamas, mergulhados nos do outro, sombrios e preocupados. E o silêncio reinava, cortado de longe a longe pelo rolamento de uma carroça, pelo passo de um cavalo ou pelos gritos das crianças que brincavam na praça... Beltrami parecia ouvir morrer nele mesmo o eco das últimas palavras do cavaleiro borgonhês. Por fim, com um sorriso, levantou-se e dirigiu-se para a chaminé de pedra cinzenta e ali aqueceu as mãos, esfregando-as suavemente, como se as lavasse nas chamas...

Curiosa história, a que acabais de me contar, senhor conde disse ele docemente e nós, os de Florença, gostamos de ouvir boas histórias... mas não vejo em que é que ela me diz respeito.

Diz-vos respeito inteiramente: está escrito claramente nas feições do rosto da vossa filha.

Deixai a minha filha de fora desta conversa! Ela começou, se bem me lembro, pelo... embaraço em que vos encontrais, sem poderdes voltar para junto de monsenhor da Borgonha sem o dinheiro que ele solicitou...

Monsenhor Carlos nunca solicita! rugiu Selongey.

Perdoai-me essa palavra, que falta, com efeito, nas leis elementares da diplomacia! Digamos: que ele desejava obter do banco Médico, para recrutar em Itália tropas mercenárias. Dinheiro que monsenhor Lourenço teve de recusar por lealdade para com o rei Luís de França, com quem, há muito, a sua família fez aliança. E vós desejais estabelecer comigo um acordo análogo. E eu tive que vos lembrar que ° dirijo, eu, uma grande casa bancária e...

A mim não me enganais, Beltrami! Vós também sois banqueiro, assim como sois, também, armador. Para ser mais claro, a vossa fortuna é, talvez, tão grande como a dos Médicis. Mas nós já regulámos essa questão e não percebo por que razão voltais a ela. Dediquemo-nos antes a esta história antiga que eu tive a honra de vos contar...

E que eu apreciei, mas que...

Basta de astúcias, messire Francesco! Cheiram de mais a loja para me agradarem. Respondei apenas a esta pergunta: Estáveis em Dijon, há pouco mais de 17 anos, no dia em que na praça do Morimont caíram as cabeças de Jean e Marie de Brévailles? E olhai que faço apelo à vossa honra, no sentido de que uma mentira... é uma mentira inútil.

O rosto de Beltrami ficou hirto, até não parecer mais do que uma máscara, por trás da qual o seu espírito enlouquecia. Quando aquele jovem entrara naquela casa, adivinhara, pressentira, que ele trazia consigo a infelicidade. Mas era preciso responder...

Estava, com efeito disse ele firmemente. Fiz muitas vezes escala em Dijon no decurso das minhas viagens a Paris e às cidades flamengas. Acontece que gosto dessa cidade, se bem que nunca lá fique durante muito tempo. Parto sempre no dia seguinte.

Mas dessa vez não partistes só. Levastes convosco uma criança recém-nascida, uma rapariguinha abandonada. Aquela a quem chamais agora filha. Negai-lo?

Uma brusca cólera apoderou-se de Beltrami, varrendo toda a reserva que impusera a si próprio longos minutos antes:

E depois? Não creio que isso vos diga respeito! Que quereis dizer, no fundo, com esses subentendidos, essas perguntas, que cheiram a polícia? Que tendes vós a ver com aqueles dois infelizes que um pouco de piedade não permitiu que vivessem e com aquela criança que, com um pouco de humanidade, teria conservado, ao menos, uma mãe e que eu salvei do ódio de um homem infame que ia esborrachála sobre uma tumba ignóbil, para onde a pretensa justiça dos vossos duques tinha atirado os pais? Pensais que sou assim tão simples que não seja capaz de ver o vosso jogo com clareza? Quando entrastes aqui, falastes-me de dinheiro e depois, subitamente, contastes-me essa terrível história, que desenterrastes sabe o diabo aonde...

Que quer isso dizer?

Que a despeito das vossas esporas douradas de cavaleiro, a despeito dessa ordem ilustre cuja insígnia está suspensa do vosso peito, não sois mais do que um vigarista, messire de Selongey!