Aquela Florença era totalmente desconhecida de Fiora e Chiara, abrigadas como estavam pelas paredes espessas dos seus palácios, guardadas por numerosos criados. Só conheciam dela a amável imagem diurna e as horas de sol, que aqueciam os mármores polícronos do Duomo, a admirável catedral de Santa Maria del Fiore, cujo cognome era devido à soberba cúpula de Brunelleschi.

As passeantes demoraram-se um pouco diante das jaulas de leões instaladas por trás da Senhoria. Os animais reais eram os fetiches da cidade, que velava por eles com um cuidado ciumento e bastava que um deles ficasse sem apetite para que as pessoas bem informadas se pusessem a profetizar uma catástrofe próxima; e se um deles morria, a Vacca, o grande sino da Senhoria, que só tocava a rebate, balia como se tivesse rebentado uma revolução.

Vagueando, conversando e respondendo às numerosas saudações das pessoas que encontravam pelo caminho, acabaram por chegar ao Canto del Tornaquinci, onde se situava a loja do boticário. Era uma encruzilhada continuamente animada graças à casa funerária ali instalada, cujos empregados jogavam à malha diante da porta, enquanto esperavam pelos clientes.

Com um gesto seguro, Colomba empurrou uma porta baixa no rés-do-chão de uma casa de bela aparência, com loggia e colunas de mármore, onde um grande letreiro, pintado com cores vivas, anunciava: «Casa das Estrelas... SerLuca Landucci, boticário.» E as quatro mulheres penetraram numa grande sala no nível inferior, sob um belo tecto esculpido e com iluminuras, porque Landucci era um homem rico e considerado, que desempenhava o seu papel na administração da cidade. Era também amigo de Francesco Beltrami e Fiora gostava de ir a casa dele mais ainda do que à de Bisticci, porque aquele era amável e alegre e porque em sua casa se respiravam maravilhosos odores de plantas secas e especiarias.

A sua loja, com as prateleiras cheias de potes de majólica azul e verde, frascos estreitos de longos gargalos de vidro translúcido, almofarizes de pedra e bronze, caixas de prata ou madeira exótica e as grandes balanças de cobre dispostas em cima do balcão de bela madeira escura de carvalho admiravelmente encerada, respirava a ordem e, em geral, a tranquilidade que convém aos homens de saber. Ora, quando o pequeno bando ali penetrou, a casa ressoava com o tumulto de uma violenta disputa: duas mulheres, que pelas suas vestes elegantes se poderiam classificar como pertencendo à boa sociedade, discutiam com o ardor e a impetuosidade verbal das peixeiras do Mercato Nuovo.

Burra velha clamava uma eu já te digo quem sou!

Há muito tempo que sei! A tua boca está cheia de fel, é por isso que tens a cara tão amarela!

Menos do que a tua! O teu defunto mijava nela todas as manhãs! A que acabava de receber a última injúria não era outra senão Hieronyma Pazzi. Louca de raiva, procurou qualquer coisa para atirar à cabeça da sua adversária e encontrou um frasco de malvaísco que a outra evitou à justa, mas que se foi quebrar nas lajes do chão. Ao ver aquilo, o boticário lançou-se corajosamente na batalha e procurou apaziguar as duas mulheres que, então, se atacavam com as mãos.

Vinde ajudar-me, vós! gritou ele aos dois rapazes da loja que, escondidos por baixo de um balcão, gozavam a cena como conhecedores. Fizeram descuidadamente o que o patrão lhes ordenava, pouco desejosos, no fundo, de ver cessar aquele combate entre a dame Pazzi e a nobre Cornelia Donati, sobretudo um combate que começara tão bem. As duas mulheres odiavam-se há muito por uma questão de rivalidade amorosa, na qual Cornelia tirara vantagem ao roubar a Hieronyma O homem com quem ela desejava casar. Depois, Hieronyma conseguira uma certa vantagem, porque Augusto Donati enganava a mulher comtudo o que vestisse saias e passasse ao alcance das suas mãos, mas a animosidade não abrandara e cada vez que as duas mulheres se encontravam estalava uma querela ao menor pretexto. Naquele dia, o archote da guerra era um inocente pote de pomada de cor encarnada para os lábios, obra-prima da oficina de Landucci e que cada uma das duas adversárias queria para si, mas que, infelizmente, era único

Conseguiram, por fim, separar as duas combatentes, que, tanto uma, como a outra, tinham deixado algumas plumas na contenda e enquanto elas retomavam o fôlego, o boticário acabava com o debate declarando severamente:

Não venderei esta cor encarnada a nenhuma de vós! Madonna Catarina Sforza, a ilustríssima sobrinha de Sua Santidade o papa Sisto IV acaba justamente de ma encomendar, porque a reputação deste unguento chegou até ela. É, portanto, para Roma que o vou enviar!

E com um gesto pleno de majestade, tirou o pote de cima do balcão e fechou-o num dos armários de dobradiças de ferro. Em seguida, declarou:

O que não quer dizer, Madonna Hieronyma, que não me devais o preço daquele frasco que haveis quebrado e do malvaísco que ele continha, que, agora, já não serve para nada. Vou dizer ao meu escriba que faça a conta...

Eu não teria quebrado esse objecto se esta malvada não me tivesse posto fora de mim exclamou a dama Pazzi. Ela deve pagar tanto como eu!

A despeito de um olho negro, Hieronyma recobrara toda a sua segurança. Era uma bela mulher de 35 anos, que conservava muita da sua frescura. O seu corpo, arredondado, permanecia apetitoso e dizia-se que encontrara na viuvez algumas compensações, com homens discretos ou homens que ainda tinham mais interesse em esconder os seus amores secretos, quer dizer, dos criados da casa. O velho Jacopo Pazzi, o patriarca que reinava sobre a tribo, passava, com efeito, por ter a mão singularmente pesada para aqueles da sua casa que se portavam mal. Falava-se por portas travessas, claro de um criado indelicado, tão cruelmente mordido pelos molossos de caça que morrera, de uma criada demasiado faladora enterrada num bosque com a boca cheia de terra depois de ter sido estrangulada e de uma jovem prima engravidada desgraçadamente e morta de uma estranha doença de languidez devida ao facto de lhe terem cuidadosamente tirado todo o sangue. E se o quese dizia de Hieronyma era verdade, esta arriscava-se muito, mas a mulher era manhosa e sabia levar o sogro, sobre o qual tomara um grande ascendente, porque tinham ambos a mesma paixão: o dinheiro.

Colérica, Hieronyma atirou com uma moeda para cima do balcão e dispunha-se a sair quando Fiora a deteve:

Tu não podes sair assim, prima! Pede ao menos a messer Lan-

ducci um unguento para dissimular esse olho. Ele tem alguns miraculosos... disse ela inocentemente.

Hieronyma não o tomou assim. Medindo a jovem, disse com tanta fúria que mais parecia uma víbora a silvar-.

O meu véu deve chegar. Quanto a ti, vil bastarda que te permites tratar-me como tua igual, sai do meu caminho!

Fiora não era menina para se deixar insultar sem responder:

Não ousarias repetir isso diante do meu pai! Com ele és toda açúcar e mel e aqui estás em casa de um amigo dele.

Escutai-a a pairar! troçou a outra. Esta rapariga é uma princesa, palavra de honra...

Não sou nenhuma princesa, visto que sou filha de Francesco Beltrami...

Tens a certeza?

Se a pérfida pergunta perturbou Fiora, não o deixou transparecer. Endireitando altivamente a cabeça, lançou:

O meu pai, esse, tem! É mais do que poderão dizer certos homens...

Cornelia Donati, que se recompusera do choque do frasco, veio colocar-se ao lado da jovem.

Não te rales a discutir com essa víbora, pequena! O teu pai é um homem de bem, todos o sabem. Todos o estimam. O mesmo não se Pode dizer dos Pazzi. Desaparece, Hieronyma! Já te vimos que chegue.

Eu vou, mas voltaremos a encontrar-nos, Cornelia Donati! Quanto a essa, há-de vir o dia em que a terei à minha mercê em minha casa e saberá, então, o que custa desafiar-me publicamente.

E saiu com um grande voo de véus e tecidos violetas, a sua cor favorita, porque achava que dava excelentemente bem com a sua opulenta cor loura. Sós, os ocupantes da loja olharam uns para os outros, estupefactos com a última saída de Hieronyma:

- Que quis ela dizer com aquilo? perguntou Chiara. Não é bem como poderá ela ter Fiora à mercê em sua casa?

A menos que a case com o filho? sussurrou Cornelia...

Aquele gnomo horroroso, marreco e cambado? indignou-se Chiara. Seria preciso que messer Francesco enlouquecesse., o que nunca acontecerá.

No entanto, é o que ela deseja disse a gorda Colomba. Uma das criadas disse-me duas palavras no outro dia no mercador de velas. Donna Hieronyma diz que é a melhor maneira de a fortuna dos Beltrami ficar na família. Todos sabem, com efeito, que donna Fiora é herdeira do seu pai...

O que só é justo! afirmou Cornelia Donati. Mas compreendo que Hieronyma cobice essa fortuna, que, sem Fiora, vai para ela. Uma pessoa não se resigna facilmente a uma tal perda. Ainda por cima, como o seu defunto marido não era o filho mais velho, não deverá esperar grande coisa do velho Jacopo. A parte que ele lhe deixar irá para o infeliz Pietro, o que não será grande coisa para ele e para a mãe...

Fiora não dizia nada. Estava hirta de horror, só de pensar que poderia ir parar às mãos daquela mulher. Daquela mulher, que falara como se estivesse muito segura de si. Felizmente, Léonarde apercebeu-se e envolveu-lhe os ombros com um braço protector:

Não ponhais macaquinhos no sótão, meu coração! Acontece a toda a gente ter sonhos impossíveis. O de donna Hieronyma não passará do que é: um sonho...

Mas ela própria não estava muito tranquila, porque não gostara da pequena frase, que deixava supor que Beltrami podia não ser o pai de Fiora. No entanto, tranquilizou-se: para saber a verdade, seria preciso que Hieronyma fosse o diabo, ou, pelo menos, sua filha. E prometeu a si mesma dar uma palavra a Beltrami.