As saudações, apressadas, respeitosas, ou amigáveis assinalavam o caminho de Francesco Beltrami. Ele respondia-lhes com amabilidade e cortesia, feliz por poder, assim, medir a amplitude da sua reputação. Quando o pai e a filha iam a chegar à casa de Bisticci, uma vara de porcos desembocou na rua e quase os atirou, a ambos, por terra. Um rapazito corria atrás deles. Ficou muito corado ao reconhecer o rico negociante e caiu de joelhos no meio da rua:

Oh, perdão, messer Beltrami, mil vezes perdão!

Parecia aterrorizado e, por pouco, quase se prostrou:

Mas, infeliz disse Francesco rindo se ficas assim de joelhos no meio da rua os porcos perdem-se. Corre atrás deles, pequeno imbecil, em vez de me pedires desculpa! E toma! Pega lá isto, no caso de não os encontrares a todos. Não vale a pena o teu patrão bater-te...

O negociante estendeu ao rapazito assombrado um florim de ouro e afastou-se com Fiora, ao mesmo tempo que o pequeno, feliz, dava às de vila-diogo.

Era a ti que deviam dar o cognome de Magníficodisse Fiora, comovida. És o homem mais generoso do mundo.

Porque dei um florim? O verdadeiro Magnífico teria dado dez. As coisas são como são. Um instante depois chegaram à loja do livreiro.

Vespasiano Bisticci era, em Florença, o grande especialista de obras antigas e os seus correspondentes vasculhavam sem descanso as cidades da Grécia e do Oriente em busca de manuscritos raros. Era um homem de 60 anos, grande e majestoso, muito amável e erudito. Os seus traços eram nítidos, bem marcados por uma rede de rugas, mas os seus olhos escuros faiscavam de juventude e a sua voz era de uma grande doçura.

O livreiro deixou a personagem com a qual conversava quando os Beltrami entraram e aproximou-se destes apressadamente.

Sê bem-vindo, ser Francesco e tu também, Fiora. Confesso que, se bem que esperasse a visita do teu pai, não pensei que a tua presença a tornasse ainda mais agradável. Tu és a própria imagem da Primavera...

Ainda ma tornas vaidosa protestou Francesco. Venho ver se já terminaste aquela cópia dos Commentaires que te pedi.

Quase. Pus nesse trabalho os meus melhores copistas e penso dar-te em breve o livro terminado, mas recebi uma coisa que, penso, te vai interessar.

De imediato, os olhos de Beltrami começaram a brilhar.

Diz lá o que é, depressa!

Quis seguir Bisticci, que se dirigia na direcção das profundezas da sua loja e, ao fazê-lo, deu um encontrão na personagem a quem o livreiro falava anteriormente. De imediato se desculpou, mas o homem virou-se e Fiora reconheceu o médico grego de quem tivera tanto medo no baile dos Médícis.

Não me deveis qualquer desculpa disse ele com a sua voz grave, ao mesmo tempo que esboçava uma saudação cortês, eu encontrava-me na vossa passagem. É que, quando estou aqui, não presto atenção senão às obras que me rodeiam...

De qualquer modo, creio que vos devo uma. A nossa chegada interrompeu a vossa conversa com messer Bisticci...

Não tem importância; eu já estava de saída. Na verdade, vim aqui para obter a cópia de um precioso tratado de medicina de Ibn Sina, a quem chamam no Ocidente Avicena, cujo original messer Bisticci recusa vender-me.

Eu disse-vos que era impossível, messer Lascaris, porque monsenhor Lourenço é que o tem, mas ele consente que se façam dele cópias disse Bisticci que estava de regresso trazendo um volumoso pacote envolto num pano negro. Infelizmente, o meu copista de língua árabe está de cama com uma forte febre e eu tive de pedir um adiamento para a entrega do tratado.

O importante é que ele chegue um dia disse o grego docemente. E agora retiro-me e deixo-vos conversar...

Perturbada pela sua presença, Fiora tinha-se afastado e fazia de conta que se interessava por um evangeliário grego, pousado em cima de uma estante. Demétrios tinha de passar por ela para sair, mas, depois de se ter certificado com uma olhadela que o livreiro e o seu cliente se instalavam junto de um balcão de carvalho encerado, em cima do qual Bisticci colocara uma grande lâmpada de azeite, aproximou-se da jovem.

Esse texto é bem austero para uns olhos tão jovens! disse ele num excelente francês. Ledes grego, mademoiselle?

Fiora virou-se bruscamente e fez-lhe face. Aquele homem metia-lhe sempre medo, mas isso era mais uma razão para não recuar.

É verdade. E também leio latim. E vós, messire, continuais a ler os pensamentos dos outros, tal como fizestes com os meus na outra noite?

Um pensamento apanha-se facilmente quando nasce de uma emoção, ou ainda quando a alma daquele, ou daquela que pensa, é pura. Vós seríeis para mim, sem dúvida, uma aluna notável, se não fôsseis de alta condição... No entanto, peço-vos que vos lembreis do seguinte: no caso de a infelicidade bater à vossa porta, estarei sempre Pronto a ajudar-vos. O meu nome é...

Eu sei. Disseram-mo. Mas, messire, é a segunda vez que me anunciais horas sombrias. Não me podeis dizer mais nada?

De momento não, porque o vosso pensamento está demasiado ocupado com o amor e porque, enquanto isso, não podeis submeter-vos ao vosso destino, mas lembrai-vos de mim quando chegar a hora. Monsenhor Lourenço deu-me uma casa em Fiesole...

- Nós também temos lá uma.

Eu sei. Portanto, será fácil encontrar-me.

Após uma saudação que o curvou ligeiramente, o médico grego, de mãos no peito, afastou-se, enquanto Fiora, sonhadora, se juntava ao seu pai e a Bisticci, demasiado ocupados para se terem apercebido da sua rápida conversa com Demétrios. Com extrema precaução, o livreiro tinha desembrulhado um grande livro de pergaminho, enriquecido com ferragens de prata e uma cruz do mesmo metal, onde estavam engastados topázios e turquesas. Fiora ouviu-o dizer:

Um dos meus agentes conseguiu arranjar este discurso de Lysias e eu achei que tu gostarias, pelo menos, de o ver...

Com gestos de infinita doçura, Francesco pegou no livro, pousou-o em cima de uma grande estante e olhou com espanto para a cruz da encadernação:

Magnífico! De onde vem? Vejo aqui uma cruz e umas armas que, se não me engano, são abaciais?

Tu és sempre muito curioso disse Bisticci, sorrindo. Este livro veio da abadia de Einsiedeln, mas mais não digo...

Pleno de veneração, Beltrami virou as espessas folhas rangentes, sobre as quais uma mão hábil tinha acrescentado iluminuras delicadas ao texto grego.

Seja qual for o preço que me pedes, Vespasiano, fico com ele! Repara, Fiora: é admirável!

Bisticci pôs-se a rir:

Tinha a certeza que o quererias. Quanto ao preço, vou ver, mas podes levá-lo já, se quiseres.

Não queres fazer uma cópia?

Já está feita. Queres vir agora ver como está o teu César?

Com pesar, Beltrami arrancou-se à contemplação do livro, sobre o qual Fiora passava uma mão acariciadora. Ambos seguiram Bisticci até uma divisão nas traseiras da casa, que dava para o jardim. Era uma grande sala bem iluminada por grandes vidraças, diante das quais estava instalada uma fila de estantes. Por trás dessas estantes uma dezena de homens aplicava-se na transcrição fiel de alguns manuscritos. Uns reproduziam o texto, outros as grandes letras pintadas com iluminuras, outros ainda as miniaturas. Alguns desses homens eram jovens, outros mais idosos e muitos deles eram de raças diferentes. Havia um alemão de pele branca e cabelos ruivos, um grego de barba negra, um siciliano tão escuro como uma castanha e até um negro vindo do Sudão. Apenas faltava o turbante branco de Ali Aslam, o copista árabe e o seu lugar estava vago...

Geralmente, Fiora gostava muito de observar os copistas de Bisticci a trabalhar, mas aquele segundo encontro com Lascaris reforçara a impressão deixada pelo primeiro e provocara-lhe uma vaga angústia. Assim, olhou sem ver os dedos hábeis desenhando os arabescos, estendendo as cores finas e colocando no lugar os frágeis realces dourados. Felizmente o seu pai, debruçado sobre os ombros dos artistas e dominado por completo pelo seu amor pelos livros, louvava o seu trabalho em termos tão calorosos, que a maior parte dos rostos iluminou-se com um sorriso. Sobretudo, claro, o velho copista, que acabava de transcrever os Commentaries de César para o rico negociante e que recebeu, a título de encorajamento, uma bela moeda de ouro.

De regresso à loja, Beltrami baixou a voz:

Já conseguiste encontrar aquele famoso Psautier de Mayence, pelo qual Johannes Fust roubou os caracteres móveis de Gutenberg?

Não. O Psautier deve estar escondido algures e é impossível consegui-lo. Nem sequer estou certo de que exista uma cópia. Essa obra parece ainda melhor defendida do que a famosa Bíblia de 42 Unhas, que é a primeira obra de Gutenberg. E também não sei porquê...

Mas, enfim, devem poder ser encontradas cópias, porque esse processo foi feito precisamente para isso? Evidentemente, nada iguala a mão de um artista, mas podemos considerá-lo como uma curiosidade e é a esse título que me interesso...

Também eu. Todavia, penso que será possível, em breve, satisfazer a nossa curiosidade. Há três anos, mais ou menos, chegaram a Veneza dois homens: o francês Nicolas Jenson e o alemão Jean de Spire e tenho a certeza que levavam com eles o processo de Gutenberg...

Nesse caso, como se explica que ainda não tenham publicado nada?

A Igreja, sem dúvida... e talvez, também, o Conselho dos Dez.

Não gostam muito de novidades, em Veneza. Mas eu conto lá ir proximamente, para ver o que se passa.

Nesse caso, sê prudente! Nunca é bom, mesmo para um estrangeiro, ter contas com o Conselho dos Dez...