Justamente porque, depois dele, nenhum dançarino é suficientemente bom... Depois, em voz mais baixa, a jovem pediu: Pai, eu queria voltar para casa...

A nota urgente que vibrava na voz da jovem fez compreender a Francesco que ela não estava a obedecer a um simples capricho.

Como queiras, mas concede-me mais alguns instantes. Partiremos assim que monsenhor Lourenço acabar de falar com o borgonhês. A seguir, falará com o senhor Bembo, aqui presente.

Mal ele terminou a frase, apareceu o Magnífico na companhia de Philippe de Selongey. Lourenço vinha sorridente e afável como habitualmente, mas o borgonhês vinha corado e os seus olhos brilhavam, como que dominados por uma cólera dificilmente controlável. Foi possível ouvir-se o que eles diziam.

O que vos disse não retira nada ao facto de que sois meu hósPede, senhor conde! Sois jovem e a hora pertence ao prazer das damas.

A voz de Philippe de Selongey soou como algumas horas antes as trombetas no recinto do torneio:

Agradeço-vos, monsenhor, mas não seria capaz. Comovo-lo disse o duque Carlos, meu nobre senhor, está em guerra e com ele toda a Borgonha. Eu sou um soldado, não um maricas e como não temos mais nada a dizer um ao outro, permiti que me retire... Como vos aprouver. Voltaremos a ver-nos. Achais necessário? perguntou Selongey com arrogância. Sem dúvida. Não será conveniente que eu vos entregue uma carta para o Grande Duque do Ocidente, já que ele me deu a honra de vos enviar à minha presença? Uma carta... é uma prova de admiração De admiração? Isso pouco importa ao meu senhor, já que não obteve o que desejava. O milanês mostrou-se mais sensato ao ouvir as propostas da duquesa Yolanda de Sabóia, aliada de Borgonha... Contra o seu próprio irmão, o rei de França? A voz de Médicis tornou-se, subitamente, cortante. Uma princesa pode, sem dúvida renegar os laços de sangue sob os aplausos de todos. Mas eu permaneço fiel às minhas alianças familiares. Lembrai-vos que a flor-de-lis está nas minhas armas! É verdade acrescentou ele com um leve sorriso de desdém é verdade que nas da Borgonha também está, mas parece que o vosso duque não se preocupa muito com isso... Desejo-vos uma boa noite, messire de Selongey! Ah! senhor Bembo, andava à vossa procura! Acompanhais-me, por favor?

Os dois homens dirigiram-se para o salão de festas. Fiora e o pai não se mexeram, para não embaraçar a saída do embaixador borgonhês. Como todas as escadarias dos palácios florentinos, a da soberba mansão dos Médicis era estreita e íngreme. Mas Philippe de Selongey continuava imóvel. De punhos cerrados, lutava visivelmente contra a vontade de seguir Lourenço e, talvez, vingar-se brutal e imediatamente das palavras desdenhosas que acabavam de ser pronunciadas.; Mas conteve-se, encolheu os ombros e contentou-se em dizer em voz bastante alta para poder ser ainda ouvido pelo Magnífico.!

Nem tudo será como vós dizeis, senhor Lourenço! Quando monsenhor Carlos tiver vencido os suíços e fizer da Borgonha o reino que em tempos foi, aperceber-vos-eis do peso da cólera!

Com um gesto, o borgonhês chamou os dois homens que esperavam a um canto da sala e que faziam, sem dúvida, parte da sua escolta. Ia afastar-se quando se apercebeu da presença dos Beltrami e aproximou-se deles. Um sorriso iluminou-lhe o rosto tão duro instantes antes:

Donzela Fiora, sois aquela que eu desejava ver antes de abandonar este palácio. Pensava, se não dançar, o que não sei fazer, pelo menos conversar convosco por um momento. Creio que vou protelar a minha partida por uns instantes.

Philippe ofereceu o seu punho fechado, para que Fiora depositasse nele a sua mão. Beltrami repeliu-o suavemente.

Não vos demoreis, messire! Acabais de pronunciar palavras que tornam a vossa presença nesta casa pouco desejável. Quanto à minha filha, não vejo que assunto de conversação possais ter com ela!

Mas... todas aquelas coisas encantadoras que podem interessar a uma jovem e, talvez, saber por que razão o seu rosto me é tão familiar. Tenho a impressão de que já a encontrei, sem poder dizer onde nem quando... O que me envergonha. Devia ser impossível esquecer uma tal beleza.

Fiora já abria a boca para dizer que o cavaleiro teria, sem dúvida, conhecido outrora a sua mãe, mas Beltrami não lhe deu tempo.

Sois vítima de uma ilusão, messire. A minha filha só tem 17 anos e nunca saiu deste país. A menos que se trate de um estratagema... utilizado muitas vezes para meter conversa com uma desconhecida! Boa noite, messire! Nós vamo-nos embora!

A voz era cortês, mas o tom não admitia réplica. Selongey não insistiu e afastou-se, saudando e dando passagem ao pai e à filha. Disfarçadamente, Fiora apanhou-lhe o olhar, ao mesmo tempo sonhador e interrogativo. Já não sentiu a irritação que sentira nos encontros anteriores, antes, pelo contrário, uma curiosa impressão de pena, como a que se sente quando se deixa qualquer coisa interessante por acabar. No entanto, respeitava demasiado as vontades paternais para as discutir... senão na intimidade.

No fundo da escadaria reencontraram os seus servidores, que os esperavam para os escoltar até casa com archotes. Nessa noite não seria preciso iluminação, porque as ruas da cidade estavam cheias de luzes, música e alegria. Festejava-se até nas praças, onde, por ordem de Lourenço, se regalava o popolo minuto, o povinho e, por toda a parte, cantores e saltimbancos arrasavam corações ou mostravam as suas habilidades. A noite de Florença, em festa, estava bela e estrelada...

Diante das portas de bronze do Baptistério, cujas personagens douradas pareciam animar-se à luz dançante dos archotes, um bando alegre de estudantes, aprendizes e raparigas envolveu subitamente o negociante e a sua filha numa roda que os isolou, por instantes, dos seus servidores: Há carícias no ar, messer Francesco exclamou, de imediato imitado pelos outros, um dos rapazes. Ainda não são horas de voltar para casa, são horas de dançar...

Eu já não tenho idade para dançar, meus amigos lançou Beltrami com bom humor e a minha filha sente-se cansada... Cansada? Com esses olhos? Um dos rapazes, que trazia um alaúde às costas, saiu da roda. Pôs um joelho em terra diante de uma Fiora divertida e cantou:

Oh rosa colhida do verde ramo. Foste plantada num jardim de amor...

A canção era célebre. Todos a entoaram em coro e Fiora, sorridente, estendeu a mão ao jovem cantor, que a beijou. Ao mesmo tempo, Beltrami abriu a sua bolsa e tirou dela um punhado de moedas, que atirou para o círculo:

A noite ainda é uma menina, meus amigos! Tirai dela o maior divertimento possível à nossa saúde!

As moedas foram apanhadas rapidamente, após o que o bando, ao som dos alaúdes, das flautas e dos tamborins escoltou o pai e a filha até ao seu palácio, onde, com a permissão do dono da casa, os criados portadores de archotes ofereceram de beber a todos, antes de partirem, também, para dançar até ao nascer do dia. Fiora e o seu pai entraram em casa e Beltrami, tendo exprimido a sua vontade de ir trabalhar para o seu studiolo num manuscrito grego recentemente adquirido, foi seguido por Fiora. Sonhadora, ela aproximou-se do retrato, do qual retirou o véu.

Não são horas para isso! reprovou docemente Francesco. Devias ir dormir...

Por favor, pai, deixa-me contemplá-la mais um pouco! Não vês que acabo de a descobrir? Tu nem sequer me disseste o nome dela.

Disse-te que se chamava Marie.

Há tantas mulheres chamadas Marie! Isso não chega.

Para já, chega. Mais tarde, dir-te-ei...

1 Expressão florentina que significa que se está feliz


Isso, na tua boca, significa imensos anos, não é verdade? E eu, que queria tanto saber... Aquele estrangeiro, aquele... Philippe de Selonggy acrescentou ela corando subitamente tê-la-ia conhecido?

Admitindo que isso seja possível, devia ser bastante jovem.

E a semelhança de que ele falou? Beltrami fechou nas suas as mãos de Fiora.

Não insistas, minha filha! Não me farás dizer o que eu quero guardar para mim e acabarás por ficar zangada! Vai dormir! Aliás, eis donna Léonarde, que te vem buscar...

Com efeito, a porta acabava de ranger, como habitualmente, dando passagem à governanta.

Não vos esperava antes da madrugada. Que se passou?

Nada, fui eu que quis voltar para casa. Não me estava a divertir tanto quanto esperava disse Fiora.

Monsenhor Lourenço dançou com ela e ainda se queixa!

Mas Léonarde já não os escutava. Tinha visto o quadro que Fiora tinha deslocado para ficar mais iluminado, perto da chaminé. Ao cabo de um instante, os seus olhos arregalados viraram-se para Beltrami:

Onde arranjastes esta imagem? perguntou ela em voz neutra.

Pintaram-mo segundo as parecenças de Fiora. É espantoso, não é verdade?

Ele deu uma pequena risada falsamente desenvolta, mas Léonarde continuou a não o ouvir.

Porquê?

Simplesmente porque me apeteceu. Não é suficiente?

Um enorme suspiro, que evocava o silvo de uma forja, escapou-se do peito da governanta:

Vós sois o vosso único juiz, messer Francesco, mas permiti que vos diga que não gosto nada. Isto é tentar o destino... e até o diabo, dar a um rosto morto as parecenças de um rosto vivo. Se acontece alguma coisa à criança...

Bagatelas, tudo isso! Não metais tais ideias na cabeça da rapariga, que já tem demasiada imaginação... e curiosidade! Ela disse que estava cansada, ide deitá-la!

Fiora, que seguira o curto diálogo com a atenção que se compreende, ofereceu a fronte ao beijo do seu pai e deixou-se levar sem protestar, mas a perturbação de Léonarde não lhe escapara e, uma vez no quarto, enquanto Khatoun, estremunhada, e a governanta a despiam para a meterem na cama, ela perguntou bruscamente em francês, para ser compreendida apenas por Léonarde: