- Trago-te um infeliz que nem sequer ousa apresentar-se, porque está persuadido de que tu o desprezas. Assegurei-lhe que o teu coração não é assim tão duro.

Fiora olhou, sem na realidade os ver, para a sua amiga e para o jovem Tornabuoni, que, de imediato, perante a palidez do seu rosto, se inquietaram. Chiara meteu o braço no da amiga para a amparar.

- Que te aconteceu? Estás doente? Estás a tremer... Vai-lhe buscar um copo de vinho, Luca! Ela vai desmaiar.

O jovem correu na direcção de um dos grandes bufetes, dispostos em cada extremidade dos salões, não sem se virar várias vezes e sem se preocupar com os encontrões que ia dando pelo caminho. Entretanto, Chiara conduzia a sua amiga até ao vão de uma janela para a fazer sentar num banco guarnecido de almofadas. Fiora passou uma mão ainda trémula pela fronte e depois sorriu para o rosto inquieto e inclinado para si.

-Já estou melhor, tranquiliza-te. Não sei o que me deu, creio que tive medo.

- Medo, tu, que nunca te assustas? De quê, meu Deus?

- De um homem que nunca tinha visto, mas em quem tu, talvez, tenhas reparado. É muito grande, um pouco curvado. Tem um rosto moreno bem enquadrado por uma barba curta e por uns cabelos grisalhos e olhos da mesma cor do rosto. Tem um traje negro e um gorro alto... Ainda há uns instantes estava aqui.

- Com efeito, vi alguém que corresponde a essa descrição, mas ignoro o seu nome. Por que tens medo dele?

- Porque me disse coisas terríveis. Segundo ele, Simonetta morrerá no ano que vem. Quanto a mim, estarei longe daqui e não estarei feliz.

Uma pequena chama acendeu-se no olhar trigueiro de Chiara.

- Um adivinho? Isso é maravilhoso! Tenho de lhe falar, absolutamente, para que me diga...

A jovem já se preparava para ir no encalço do homem. Fiora reteve-a com uma mão firme.

Fica aqui! Ele não é um homem a quem se pergunte pelo futuro. Quando ele olha para ti, gela-te o sangue. E, peço-te: nem uma palavra acerca do que te disse. Chiara condescendeu, mas, pela sua expressão, Fiora viu bem que não ficara convencida. Felizmente, Luca estava de regresso com um copo de vinho Malvasia, pelo qual Fiora não tinha, aliás, qualquer desejo, mas do qual bebeu algumas gotas para dar prazer ao seu apaixonado, que olhava para ela com olhos de cão fiel, feliz por constatar que um pouco de cor já regressava aos olhos da jovem.

Isso vai melhor, não é verdade? E agora, quais são as ordens...

Tenta saber quem é uma determinada pessoa que nos interessa muito! disse Chiara, que continuava com a ideia fixa.

Qual pessoa? A jovem lançou-se numa descrição tão fiel quanto possível, porque já em segunda mão. Fiora deteve-a:

Não te canses. Estou a vê-lo a falar, além, com raesserPetrucci... Luca virou-se, olhou na direcção indicada e franziu o sobrolho.

O magistrado municipal é a última pessoa com quem o feiticeiro devia conversar. É ele que abre o caminho que vai dar à fogueira...

Um feiticeiro? E tu conhece-lo?

Eu não o conheço, mas sei que é precisou Luca altivamente! O que não é a mesma coisa...

Pouco importa! Fala, já que sabes, em vez de nos deixares em brasa.

Bela palavra quando se trata de um adorador do diabo! troçou o jovem. Bem, ficais a saber, belas curiosas, que aquele homem chama-se Demétrios Lascaris. É um médico grego e o meu primo Lourenço tem-no em grande estima por causa do seu saber. Espera que este Lascaris, que pretende descender dos imperadores de Bizâncio, lhe devolva o olfacto de que foi privado e presenteou-o com uma casa perto de Fiesole. Mas dizem que se passam lá coisas estranhas... que evocam lá o diabo!

A voz de Luca baixava de tom à medida que falava e acabou num sussurro dramático. O que teve o dom de irritar Fiora:;

Nós temos uma villa em Fiesole e nunca ouvimos falar nesse médico grego. Quando um homem sai da mediania, é espantoso o que se diz dele...

1 Com efeito, o Magnífico não tinha olfacto.

2 No sentido antigo do termo.


Para mal dos seus pecados, a jovem foi incapaz de dizer a razão que a levara a tomar, de repente, a defesa de um homem que a assustara tanto uns instantes antes. Talvez porque, educada pelo seu pai na escola da filosofia grega, achava chocantes aqueles comentários supersticiosos. O homem era extraordinário, sem dúvida e parecia ter o dom estranho da adivinhação. Mas daí a associá-lo a um dos feiticeiros delirantes que floresciam em certas aldeias à volta de Florença, era de mais!

- Talvez seja melhor não espalhar esse género de boatos - acrescentou ela. - Espantar-me-ia muito que monsenhor Lourenço, inteligente e de espírito profundo como é, protegesse uma criatura demoníaca qualquer!

- Que mosca te mordeu? - protestou Chiara. - Olha para este infeliz, que tu não cessas de maltratar. Até tem lágrimas nos olhos...

- Nesse caso, que me perdoe. Estou nervosa, esta noite, um pouco irritada, talvez. - disse Fiora levantando-se. - Há dias e este é um deles, em que parece que nada me agrada.

- Infelizmente - disse Chiara - eu apanho sempre com esses dias!

Fiora desatou a rir e para consolar um pouco o seu adorador malfadado acariciou-lhe a face com a ponta do dedo:

- Platão diz que ninguém escapa ao seu destino! Boa noite para vós! Ide dançar juntos esta calata que os músicos começaram a tocar! Eu vou ter com o meu pai, para lhe pedir que me leve a casa... Estou cansada!

A ligeireza com que Fiora girou nos calcanhares desmentia as suas últimas palavras, mas Chiara, tão bem como Luca, sabia que era inútil tentar demovê-la do que quer que fosse quando ela não queria. Com o mesmo suspiro, mas com sentimentos diferentes, viram ambos o seu vestido de brocado nacarado deslizar por entre os grupos e abandonar o salão de festas.

- Bem - suspirou o jovem Tornabuoni - vamos dançar, já que ela assim o deseja!

- É o que se pode chamar um convite galantemente formulado disse Chiara com uma careta trocista. - No fim de contas, por que não? Isso ou pentear um licórnio, é uma maneira de passar o tempo!

Fiora encontrou Francesco Beltrami na sala de música. De pé, perto da chaminé onde uns escravos negros não cessavam de acrescentar cavacos odoríferos, conversava com Bernardo Bembo, o embaixador de Veneza, que já encontrara várias vezes por ocasião de estadias nas margens do Adriático. Quando Fiora se aproximou, era este último que falava e ela não ousou interrompê-lo.

Desde que o papa Pio II morreu, logo depois de tentar lançar uma cruzada contra os Turcos, Veneza luta só contra o infiel, que a desapossou de quase todas as colónias da Grécia, ou da Ásia Menor. Ninguém parece dar o devido valor ao perigo que o Ocidente corre com um sultão da têmpera de Maomé II. Nem o papa Sisto IV, unicamente ocupado com a construção em Roma e a enriquecer os seus sobrinhos, nem Feirante de Nápoles, nem o Sforza de Milão, nem os Genoveses, claro, que esfregam as mãos enquanto contam as nossas perdas em terras, homens e navios. Toda a gente parece esquecer que Maomé conquistou Bizâncio e que o estandarte do Profeta flutua também sobre o Parténon e que apenas a largura do Adriático protege os Estados do Papa da ameaça dos Turcos, cujos exércitos, há dois anos, chegaram a Frioul.

Nessa época, porém, Veneza dava provas brilhantes de coragem e força, expulsando o inimigo das muralhas de Scutari, que estão mesmo por baixo do seu nariz.

Sem dúvida! Loredano, com apenas 2500 dos nossos, repeliu dez mil turcos para o mar. Mas não passou de um caso em mil e quem sabe se, neste momento, Scutari ainda nos pertence? Os corsários turcos atacam os nossos navios quase em frente dos canais do Lido. E infelizmente o nosso doge, Pietro Mocenigo, apesar de só ter 68 anos, está enfraquecido pelos numerosos ferimentos recebidos nas batalhas contra os corsários e janízaros de Maomé. Não durará muito e nós precisamos de um chefe jovem e cheio de vida.

Seja, mas os vossos marinheiros não têm rival e tendes em Bartolomeo Colleoni o maior condottiere de Itália...

Uma nuvem passou pelo rosto de Bembo:

Colleoni acaba de morrer no seu castelo de Malpaga. A sua fama era tal que ninguém se lembrava da sua idade. - Era assim tão velho? Ia fazer 75 anos. Acrescento que legou à República uma soma de cem mil ducados de ouro, para que, apesar de morto, possa continuar a participar na guerra contra os Turcos. Mas pôs uma condição para a sua generosidade: Veneza erigir-lhe-á uma estátua na praça São Marcos...

Peste! disse Beltrami rindo em pleno coração de Veneza! Nós torneámos a dificuldade: a estátua erigir-se-á na praça Scuola

di San Marco. E se eu estou aqui é, sem dúvida, para pedir a aliança de monsenhor Lourenço, para nos ajudar a proteger as nossas possessões em terra firme, caso o Turco se aproxime, mas também para encomendar esta estátua equestre ao vosso maior escultor, Verrochio. Se Florença o autorizar!

Tanto um, como o outro, ficarão, certamente, encantados.

O tom de Beltrami mudou subitamente, ao mesmo tempo que atraía para si Fiora, que se mantinha a dois passos, esperando que a conversa acabasse.

Quanto a esta jovem que, como certamente reparastes, nos escutava, ilustríssimo senhor, permiti que vo-la apresente: a minha única filha, Fiora.

O rosto do veneziano iluminou-se, ao mesmo tempo que a jovem lhe fazia uma graciosa vénia.

Já tinha reparado, com efeito, que nos escutava, mas a curiosa é tão bela que me senti perturbado. Espero não ter dito nenhuma asneira.

Ficai seguro do contrário. Que queres, filhinha? Por que não estás a dançar depois da honra que monsenhor Lourenço te concedeu?