A cólera purpurou subitamente o belo rosto de Luca e, desembainhando o punhal que tinha à cintura, metido numa rica bainha de couro de Cordova, atirou-se, de arma em riste, ao homem que o desafiava de Maneira tão insolente.

Ides arrepender-vos dessas palavras!

O outro nem sequer descruzou os braços e olhou para o agressor com o sorriso indulgente reservado às crianças e aos irresponsáveis:

Que pretendeis fazer? Provar o vosso valor num local como este quer dizer, fora de propósito... ou quereis assassinar-me?

Pretendo que lutemos agora mesmo no jardim deste palácio,

por exemplo, para vos mostrar se sou uma criança ou um louco! Vindes, ou tenho de vos forçar?

Falais a sério?

Falo a sério!

Meu Deus, como sois chato! Tendes mesmo vontade de acabar a noite na vossa cama com um ou dois furos na pele? Parece-me que numa noite destas há coisas melhores a fazer.

O quê, por exemplo?

Mas... embriagar-vos, por exemplo. Os vinhos de monsenhor Lourenço, se bem que não sejam da Borgonha, são dignos de estima. Ou, então, pedir a uma bela dama para dançar. Eu, tudo o que desejo, é que saiais daqui. É que tenho muita vontade de tomar o vosso lugar aos pés dessa jovem donzela, que ninguém ainda consentiu em me apresentar...

Era, aparentemente, a noite dos propósitos interrompidos, porque ouviu-se uma voz baixa e rouca e a alta silhueta do Magnífico apareceu subitamente entre os dois homens, que sublinhe-se recuaram um passo em sinal de respeito, ao mesmo tempo que esboçavam uma saudação:

Eis uma lacuna que eu posso preencher facilmente disse Lourenço num francês perfeito. Permiti, Madonna Fiora, que vos apresente o conde Philippe de Selongey, cavaleiro do Tosão de Ouro como podeis ver e embaixador do senhor duque Carlos da Borgonha. Quanto a vós, messire Philippe, espero que aprecieis devidamente a honra que vos é concedida por poderdes saudar donna Fiora Beltrami, um dos mais belos ornamentos desta cidade e filha de um homem que eu tenho em grande conta. Estais satisfeito?

Inteiramente, monsenhor!

E a saudação que Philippe ofereceu a Fiora teria satisfeito uma imperatriz.

E agora, concedei-me a graça de vos mandar conduzir ao meu gabinete das medalhas. Temos de falar. Eis aqui Savaglio, que vos vai levar lá. Quanto a vós, adorável Fiora, concedei-me a alegria de danÇar convosco esta pivd

A atmosfera, tão ameaçadora instantes antes desanuviou-se como que por encanto. Os dois adversários separaram-se: Philippe de Selongey para acompanhar o capitão da guarda do palácio e Luca Tornabuoni para oferecer a sua mão a uma jovem ruiva que acabava de aparecer precisamente naquele instante. E Fiora viu-se a caminho da sala de baile, a sua fina mão alojada na do senhor, que a segurava bem alto para que todos admirassem bem a sua dançarina. Juntos, tomaram lugar à cabeça da dupla fila de dançarinos, ao mesmo tempo que os músicos começavam.

As figuras de uma dança que exigia perfeição de gestos manteve-os silenciosos por uns curtos momentos. Fiora abandonou-se ao prazer de evoluir ao som da música com o ardor da sua juventude, mas também com uma ponta de orgulho. Era muito excitante dançar com aquele a quem muitos chamavam em voz baixa «o príncipe» e ser, assim, o centro de todas as atenções. A firmeza da mão que segurava a sua comunicava-lhe uma estranha segurança. Pela primeira vez na sua vida a jovem gozava a alegria de se sentir bela e admirada, que lhe vinha da expressão nova que podia ver nos olhos sombrios de Lourenço. Ele olhava-a como se nunca a tivesse visto antes e, sob aquele olhar insistente, ela sentiu-se corar.

Que idade tens? perguntou subitamente Lourenço.

Dezassete anos, monsenhor.

A sério? Ter-te-ia dado mais. Talvez devido à Maneira como ergues altivamente a cabeça e olhas de frente. A maior parte das raparigas da tua idade baixa os olhos à mais pequena palavra e eu sempre pensei que nessa atitude havia uma boa dose de hipocrisia. Isso não acontece contigo! Permaneces serena em todas as circunstâncias... pelo menos, dás essa impressão.

Porque não desmaiei de emoção quando me convidaste? (A jovem desatou a rir com um riso musical, ao qual o timbre quente da sua voz dava um encanto inesperado.) Quanto à minha serenidade, não acredites nela. Encolerizo-me com muita facilidade. E também sei corar...

Eu vi... e ficas bem bonita. O teu pai já pensou em casar-te? Creio que, para já, ainda não. E eu também não o desejo, senhor Lourenço, se queres saber a verdade... Aliás, as raparigas daqui raramente se casam antes dos 20 anos. |

Que estranha criatura que tu és! Desde os dez anos que as tuas iguais sonham com um marido e, pelo que pude ver, a ti não te faltam apaixonados. A prova é que dois homens estavam prontos a lutar por ti, parece-me? Nenhum deles te tocaria o coração?

- Nenhum. Aliás, não era por mim que Luca Tornabuoni e o estrangeiro iam lutar, mas sim pela maneira como se concebem os torneios aqui e na Borgonha...

- Que coisa tão grosseira! Se eu tivesse sabido, tê-los-ia feito parar. A uma mulher bela só se deve falar dela. Na verdade, estou desiludido.

- Eu não - disse Fiora tranquilamente. - Vê tu, monsenhor, que eu não estou certa de ser cortejada por mim mesma... Ouço falar muito da fortuna do meu pai e sou filha única.

O braço que Lourenço acabava de passar pela cintura de Fiora, apertou um pouco o seu amplexo e a sua voz carregou-se de severidade:

- Essas ideias não são para a tua idade! Nem sequer deviam afluir ao teu espírito. Devias sonhar apenas com a alegria de ser jovem e encantadora, com a felicidade que um dia te atingirá e com as festas que te trarão o amor. Na verdade, começo a acreditar que não há um único espelho digno desse nome no palácio Beltrami...

O par separou-se para a saudação final e Fiora recebeu em pleno rosto o sorriso trocista do Magnífico.

- Vou-te enviar um. E agora devolvo-te a liberdade, belo passarinho, porque tenho de ir para onde me chama a política...

Os dois dançarinos tinham parado face às cadeiras de cerimónia onde estavam sentadas Lucrezia Tornabuoni, a mãe de Lourenço e Giuliano, uma dama imponente, com os seus veludos negros cobertos de prata e Clarissa, a ruiva Clarissa Orsini, esposa de Lourenço, vestida de brocado escuro e linho dourado. Fiora ofereceu-lhes uma reverência plena de respeito, que lhe valeu um sorriso duplo e depois afastou-se procurando Giuliano com os olhos, para ver se ele fora testemunha daquilo que ela considerava um triunfo, mas o jovem, sentado num banquinho de veludo aos pés de Simonetta, rodeada por uma grinalda de poetas, não prestava qualquer atenção à dança. Olhava para a bela genovesa, que se inclinava muitas vezes para ele, sorrindo.

Ambos davam uma imagem tão perfeita daquele amor cortês tão caro aos romances de cavalaria, que Fiora esqueceu o seu ciúme para admirar, como um artista, o grupo formado, uma sinfonia de brancura, sobre a qual sobressaía o cintilar das jóias e o doce brilho das pérolas. Mas na perfeição da jovem havia qualquer coisa de frágil, que subitamente atingiu quem a observava. A pele tão branca de Simonetta parecia mais fina, quase transparente e se o grande decote permitia admirar os seus seios encantadores, o desenho frágil das clavículas parecia mais acentuado. Quanto às mãos, uma das quais estava pousada no ombro de Giuliano, eram de uma brancura diáfana... Estaria Simonetta doente?

Longe de se alegrar com uma coisa que libertaria Giuliano, Fiora sentiu uma piedade brusca e profunda. Permitiria o Criador que uma doença qualquer arruinasse, na flor da idade, uma das suas obras mais bem acabadas? Simonetta era demasiado jovem e demasiado alegre para que, olhando para ela, se evocassem as trevas da tumba.

A sensação de uma presença por trás de si fez virar a jovem tão bruscamente que ela embateu numa personagem que nunca tinha visto antes.

Oh! Desculpai-me! disse ela em francês. O homem não pareceu ter-se apercebido fosse do que fosse. Os olhos que ele tinha pousados no casal Giuliano-Simonetta nem sequer pestanejaram.

No entanto disse ele é fatal. Achais, jovem, que monna Simonetta é demasiado jovem para morrer? É que seria uma pena...

Como podeis saber uma coisa dessas? sussurrou Fiora, estupefacta.

Não sei: sinto-o, ouço-o. Acontece-me, por vezes, ouvir os pensamentos das pessoas. Quanto àquela jovem, lembrai-vos do que vos digo esta noite: ela não vive mais de 15 meses. Nessa altura Florença viverá uma aflição, mas vós não a vereis.

Uma súbita angústia secou, de repente, a garganta de Fiora.

Porquê? Estarei... também morta, eu?

Os olhos escuros do desconhecido mergulharam nos da jovem e esta teve a impressão bizarra de que ele conseguia ler tudo o que lhe ia na alma.

Não... mas lamentá-lo-eis, talvez, porque estareis longe e não me parece que estareis feliz.

Estarei... longe? Mas, onde...

Ele interrompeu-a com um gesto da sua mão ossuda e afastou-se de imediato. Fiora viu o seu traje negro, semelhante aos usados pelos médicos, afastar-se por entre os alegres vestidos de festa, mas conseguiu seguilo através das salas iluminadas, porque era um homem muito grande e a sua cabeça, na qual havia um gorro alto com um gancho dourado dominava

1 Contracção de Madonna.


quase todas as outras. Fiora teve vontade de se lançar atrás dele, mas não foi capaz, porque as palavras que ele acabava de pronunciar tinham-na gelado por completo. Havia nelas uma ameaça imprecisa que a assustara, porque escapava ao entendimento humano.

A voz familiar de Chiara tirou-a daquela espécie de abatimento e fê-la estremecer.