- Chegas muito tarde, Francesco Pazzi. Por que não deste a conhecer mais cedo o teu desejo de tomar parte na giostra

- Porque não me apetece disfarçar-me. Apresento-me na minha hora, a menos que este torneio não seja aberto a todos?

- Por que não haveria de o ser? E se desejas medir-te com o meu irmão...

- Com ele ou com outro qualquer, não tem importância! O que eu quero é receber a coroa e beijar a mão e os lábios da bela Simonetta. A menos que os favores sejam exclusivamente reservados ao teu irmão?

- Se os queres, vem buscá-los - rugiu Giuliano, furioso. - Mas não os terás com facilidade...

- É o que vamos ver!

O combate travado entre ambos não tinha nada de cortês. Pazzi batia-se com irritação e Giuliano com raiva, provocando uma troca de golpes que atraiu os aplausos do público. Pela sua parte, Fiora ficou satisfeita com aquela luta sem concessões, que apagou, por fim, o meio sorriso irónico de Philippe de Selongey. Até ali, aquele estrangeiro parecera considerar a soberba giostra uma brincadeira de crianças.

Por fim, Pazzi mordeu o pó e retirou-se sob os apupos da multidão, aos quais Fiora se associou de boa vontade. O vencido era o cunhado de Hieronyma, sua prima detestada e ela acabara por detestar, também, os Pazzi em geral. Além disso, estes escondiam com dificuldade a sua animosidade para com os Médícis e dizia-se que Francesco tentara, certo dia, obter à força os favores de Simonetta. Vê-lo vencido era bom e Fiora quase esqueceu alguma pena que sentiu quando chegou o momento que todos esperavam, o clímax do espectáculo, que era a coroação do vencedor pela rainha do torneio.

Giuliano ajoelhou-se diante de Simonetta, que lhe colocou na cabeça uma coroa de violetas, antes de lhe dar um beijo um pouco mais longo, talvez, do que o exigiam as circunstâncias. Ao ver aquilo, a multidão ovacionou-o, os homens gritaram, as mulheres choraram de comoção, os gorros voaram pelo ar e o entusiasmo atingiu o cúmulo quando um jovem saltou da tribuna e se foi colocar junto do trono da rainha. Era um rapaz magro, de rosto ossudo e cabelos louros indisciplinados, que pareciam de palha. Os seus olhos claros, mas severos, poderiam pertencer a um monge, ou a um profeta.

- Minha irmã - disse ele calmamente - não te parece que o teu lugar é em casa, junto do teu marido e não aqui, onde ele não está?

- Meu Deus! - sussurrou Fiora encantada - eis o nosso Amerigo, que desce das suas estrelas...

- para se ocupar da de Génova - acrescentou Chiara, para quem o menor incidente era motivo de encanto. - Será que nem tudo vai bem entre os Vespucci, para que o iluminado da família se intrometa?

Mas já o Magnífico interpelava o perturbador:

- Retira-te, Amerigo Vespucci! Simonetta reina em Florença pela sua beleza e os seus deviam estar orgulhosos. Se Marco, o seu esposo, não a quis acompanhar, lamentamos, mas não podemos fazer nada.

- Ele sabe que não seria bem-vindo! Retiro-me porque mo ordenas, mas quis que soubesses que a família não aprova...

Um homem aproximou-se, puxou-o pela manga e Fiora reconheceu o seu pintor. Sandro Botticelli e o jovem Vespucci eram amigos, sendo a casa de um e o palácio do outro vizinhos no bairro de Ognissanti. Entretanto, Fiora e Chiara preparavam-se para tomar o partido de Amerigo. O pai de uma e o tio de outra fizeram-nas acalmarem-se.

- Devias saber que esta gente perde a cabeça quando se lhes toca no ídolo - disse Albizzi descontente. - Quanto aos Médicis, sabes muito bem que são rancorosos e eu não quero ser exilado como o meu pai.

Francesco, esse, limitou-se a sorrir para a sua filha e a obrigá-la a sentar-se, porque o espectáculo ainda não tinha terminado. A jovem sentou-se e, maquinalmente, olhou para o enviado borgonhês, mas virou a cabeça de imediato, corada até à raiz dos cabelos: não apenas o insolente se permitira sorrir-lhe, como, com a ponta dos dedos, lhe enviara um beijo...

Ao mesmo tempo que os cavaleiros mais ou menos magoados e sujos regressavam às tendas que os esperavam, em boa ordem, o Magnífico mandava comparecer perante o trono de Simonetta, para o felicitar, o homem que montara o faustoso espectáculo, desenhara os fatos e pintara o cenário: Andréa di Cioni, chamado Verrochio. Esse homem era, então, o pintor e escultor mais célebre de Florença e os alunos enchiam o seu atelier, de onde saíra Botticelli.

O artista apareceu sob os aplausos da multidão e, não fora as suas roupas elegantes, poder-se-ia tomá-lo, sem dificuldade, por um camponês, com a sua estatura baixa e entroncada, a grande cabeça redonda coberta de cabelos negros e frisados. Junto dele caminhava o seu aluno preferido, que o ajudara na preparação da festa e esse, grande, delgado e louro, atraía os olhares de todos, porque tinha a beleza impassível de uma estátua grega. Era Hermes, de regresso à terra. E enquanto Verrochio agradecia, confundido, o deus grego recebia as felicitações do senhor com uma saudação, um sorriso e nenhuma palavra.

- Meu tio - declarou Chiara - se aquele jovem é pintor, devias pedir-lhe para me pintar o retrato. Gostava de posar para ele...

- Menina tola! Pede isso ao teu marido, quando tiveres um. Aliás, nem sequer sei o nome dele...

- Se o problema é esse - disse Beltrami - posso informar-te. É o filho de um notário das redondezas, com o qual tive, recentemente, um assunto a tratar. Chama-se Leonardo... Leonardo da Vinci e Verrochio estima-o muito. É um rapaz estranho, mas de muito talento...

- Leonardo? Não gosto muito desse nome. Faz-me lembrar a tua governanta - disse Chiara com um sorriso trocista.

Fiora encolheu os ombros.

- É apenas um nome! Ainda por cima porque aquele jovem é demasiado belo para evocar dame Léonarde...

A noite aproximava-se rapidamente. De repente, como por artes da varinha de um mágico, a praça iluminou-se com a chama de centenas de archotes. As trombetas lançaram para o céu sombrio o seu apelo triunfal e o cortejo da rainha voltou a formar-se. Lourenço ofereceu a sua mão a Simonetta para a ajudar a descer do trono. À luz trémula dos archotes, a jovem brilhava como uma estrela...

- Meus amigos - lançou o Magnífico com a sua voz rouca - as damas reclamam, agora, o nosso serviço. Vamos dançar!

Logo a seguir, os convidados abandonaram os seus lugares. Fiora viu, então, que o estrangeiro continuava a contemplá-la.

CAPÍTULO II

O ENVIADO DA BORGONHA

Madonna, tendes de acreditar em mim, eu preferia morrer a ser vencido perante os vossos olhos...

Luca Tornabuoni suplicava de joelhos a Fiora, sentada entre uma tapeçaria de Arras franjada a ouro e uma credencia de cores quentes e joalharia preciosa carregada de vidro de Veneza na mais recuada sala do palácio Médicis, onde a jovem se refugiara para encontrar um pouco de tranquilidade... Havia ali pouca gente, estando a maior parte dos convidados na sala vizinha, onde uma viva romanesca empolgava os dançarinos ao som das violas, das harpas, das flautas e dos tambores.

Como todos os Florentinos, Fiora adorava a música, mas, naquela noite, preferia ouvir a dançar, já que o espectáculo de Giuliano conduzindo o baile e segurando Simonetta pela mão não lhe era muito agradável. Refugiara-se, portanto, naquela sala mais agradável. Infelizmente, aquele grande palerma seguira-a! A jovem recompensou o seu protesto inflamado com um sorriso ácido:

Morrer, talvez... mas não desiludir Monsenhor Lourenço disse ela. Toda a gente sabe que Giuliano tinha de ser o vencedor do dia, porque a Estrela de Génova era a rainha da giostra. Ela não podia ficar desiludida e quem desilude Simonetta, desilude Lourenço...

Estais a querer dizer... que eu me deixei vencer?

É mais ou menos isso. Ora vamos, Luca, vós sois duas vezes mais forte do que Giuliano e uma meia cabeça mais alto! Contra Lourenço, não digo nada. Mas contra o irmão dele, vós devíeis vencer. Esperava que o meu penhor vos conduzisse à glória. Como isso não aconteceu... devolvei-mo!

O jovem apoiou a mão no peito para melhor defender o precioso penhor:

Não sois assim tão cruel?

Eu não gosto de vencidos. Vamos, devolvei-me o meu lenço! Não foi feito para enxugar lágrimas de arrependimento.

Uma risada fez a jovem virar-se. Apoiado à tapeçaria e de braços cruzados no peito sempre ornamentado com o colar do cordeiro dobrado em dois, Philippe de Selongey olhava para o casal com um sorriso trocista, que a jovem achou perfeitamente detestável. Quando viu que Fiora olhava para ele, o enviado da Borgonha bateu palmas num aplauso zombeteiro:

Bravo, menina! Parece que, a despeito da vossa tenra idade, dais provas de um singular espírito de perspicácia...

Que quereis dizer? perguntou Fiora com altivez.

Que não vos deixastes enganar assim como eu pela comédia marcial que nos impingiram há pouco. O cenário foi óptimo, mas os papéis foram mal interpretados.

Isso significa o quê? grunhiu Luca avançando para o perturbador, o que permitiu à jovem constatar que, se Tornabuoni era mais alto do que Giuliano, o borgonhês ainda era mais alto do que Tornabuoni.

O sentido é claro, parece-me disse Selongey com um desdém que fez corar as faces de Fiora vimos um belo espectáculo... que não se pareceu nada com um torneio digno desse nome.

Que sabeis vós disso? Nós combatemos, se bem que com armas corteses...

Chamais àquilo armas corteses? Eu diria antes armas simbólicas... ou mesmo armas inexistentes. Se quereis saber o que é um verdadeiro torneio, ide a Bruxelas, a Bruges, a Gand ou a Dijon e podereis constatar que as nossas armas corteses podem servir em tempo de guerra... a gente como vós!